terça-feira, 17 de agosto de 2010

DA AUTO-GERAÇÃO DE MITOS, OU DA GERAÇÃO DE AUTO-MITOS, OU SEJA O QUE FOR NESTA ESTONTEANTE ORGIA DE PALAVRAS NOVAS!

Já lá se vão umas quatro décadas (tempo suficiente para se lavarem as pretensões), aprendi um negócio interessante chamado de janela johari. Era uma técnica de feedback; uma ferramenta para conhecermos o que achamos de nós mesmos, em confronto com o que os outros acham de nós. Desde então, tenho levado ela em conta em minhas meditações, o que deve ter aumentado, um pouco que seja, minha capacidade de empatia e exercício de alteridade.
Certas críticas que faço à “mitologia” espírita, se inserem nesse contexto.
Há um certo “autismo intelectual” de alguns companheiros em relação a esse caso do recenseamento: “quando vamos conseguir ensinar (sic) as pessoas que kardecismo não existe?!” E continuam com a ladainha de que o termo kardecismo foi criado pelo movimento espírita brasileiro para destacar a “apropriação” do termo espiritismo por outras práticas e crenças.
Já mostramos, algumas postagens atrás, que os termos kardecismo e kardecista eram livremente utilizados na Europa muito antes do movimento espírita brasileiro ter qualquer expressão; e pelos próprios espíritas. Aliás, o termo começou a ser empregado ainda no tempo de Kardec ( veja Revista Espírita de outubro de 1865, página 289 da Edicel), apesar de seus protestos de que não era “autor” da doutrina, mas, apenas, um “facilitador de Deus” (expressão minha, e irônica, sim!), com a missão de diminuir as preocupações do Demiurgo na implantação de sua "terceira revelação" neste insignificante grão de areia cósmica. Basta dizer-se espiritismo, pois se Kardec criou o termo, só o que é kardecista o merece!
Realmente, Kardec diz tê-lo criado. Não no Livro dos Espíritos, na Introdução. Lá, basta lermos bem, Kardec não diz que o criou, diz que o usa. Mas, num texto publicado em Obras Póstumas, quando ele fala da Constituição do Espíritismo, é categórico: "Tomando a iniciativa da constituição do Espiritismo, usamos de um direito comum, o que todo homem tem de completar, como o entender, a obra que haja começado e de ser juiz da oportunidade. Desde o instante em que cada um é livre de aderir ou não a essa obra, ninguém se pode queixar de sofrer uma pressão arbitrária. Criamos a palavra Espiritismo, para atender às necessidades da causa; temos, pois, o direito de lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita".
Era no que ele cria. Mas, é a verdade?
O primeiro alerta me veio do Dicionário Houaiss, o mais badalado do momento na língua portuguesa. No verbete espiritismo, ele diz mais ou menos assim (digo "mais ou menos" porque não o tenho no momento para uma transcrição literal: e quem for conferir, o faça também nos verbetes espírita e espiritista): "espiritismo, do francês spiritisme (1857) e do inglês spiritism (1856)" (!). Escrevi à editora pedindo que me dessem disto as fontes: não mereci resposta.
O segundo alerta veio de um blogueiro onipresente, o Vitor Moura, que mantém blogs, páginas, comunidades, e o que mais tem de direito, criticando ferozmente Kardec e o Espiritismo. Mas, certo de que se eu quero me conhecer devo ouvir meus inimigos, trago sua pesquisa:
- Já em 1854 a palavra era utilizada por Orestes Augustus Brownson, em seu livro, "The Spirit-Rapper. An Autobiography", para ser referir à necromancia.
E, mais: No mesmo ano, 1854, Leonard Marsh (1800 – 1870), da Universidade de Vermont, em seu livro "Apocatastasis, or Progress Backwards", editado em Burlington por Chauncey Goodrich, usava o termo spiritism. Talvez fossem essas as fontes que a editora do Houaiss me indicariam, caso me respondessem.
E agora? Kardec, que já havia perdido o direito legal, pois os direitos autorais vencem 60 anos após a morte do autor, perde também o direito moral de "lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita"?
E nós, vamos continuar alegando antipaticamente que apenas os kardecistas (ops! kardecismo não existe!) podemos ser chamados de espíritas, e os demais estão usurpando o termo?
Ou, é mais um mito que cai?
De qualquer forma, pelo exposto, torna-se não apenas admissível, mas necessária, a expressão "espiritismo kardecista", pois todas as outras formas, doutrinas ou crenças que têm por base o contato com os espíritos são, também, de pleno "direito histórico", espíritas!
Henri Sausse mostrou que era bom linguista quando fundou, em 1918, em Lyon, Le Spiritisme Kardeciste.

P.S. Este texto está mesmo a exigir um post scriptum, pois, além da necessária correção feita nos "comentários" sobre o verdadeiro autor da pesquisa citada (fontes que eu não verifiquei), é preciso anotar que o Dicionário Houaiss, em edições posteriores à minha consulta, não mais coloca a data de 1856, nem se reporta ao inglês sobre a origem do vocábulo espiritismo. Talvez a editora tenha recebido mais cartas, além da minha, e verificado a precariedade de suas fontes.