domingo, 9 de junho de 2019

OBRAS PÓSTUMAS


Todos sabemos que a última obra redigida por Kardec foi a Revista Espírita de Abril de 1869.  Porém, não sei se ela já estava impressa no momento em que ele morreu em 31 de março, se foi ele quem a distribuiu e se realmente anexou, ou anexaram, o tal catálogo das obras para formação de uma biblioteca espírita que ele promete no editorial.  Ainda no editorial da Revista de Abril ele anuncia a nova sede do espiritismo -- à rue de Lille, 7 --, onde funcionará a Sociedade e a Livraria Espírita, administrada por um gerente, enquanto a sede da redação continuaria com ele, em sua residência à Avenida e Vila Segur, 39, atrás dos Inválidos.  Como se costuma dizer: o homem põe e Deus dispõe.  Morreu, segundo o editorial da Revista de Maio, no momento mesmo em que fazia essas mudanças de endereços.  A Revista de Maio torna-se, então, o panegírico do mestre estimado e respeitado pelo mundo cultural.  Além disto, este número da Revista nos traz informações importantes sobre o futuro do movimento espírita.  A nova Diretoria da Sociedade de Paris para o biênio 1869/1870 é composta pelos senhores Levent (vice-presidente de Kardec na anterior), Malet (presidente na atual), Canaguier, Ravan, Desliens, Delanne e Tailleur. A Revista Espírita será administrada pelo Sr. Bittard e redigida pelo Sr. Desliens.  A Senhora Allan Kardec  (como todos sabem, Amelie Gabrielle Boudet) única proprietária legal das obras e da Revista, decide doar anualmente à Caixa Geral do Espiritismo o excedente dos lucros provenientes dos livros e da Revista, mas pretende tudo gerir pessoalmente, determinar a reimpressão das obras, as publicações novas e regular todos os gastos.  

Conforme estabelecido,  um mês depois, junho de 1869, a Revista  já está sob a direção do Desliens.  E, ele a inicia, em seu editorial, com o anúncio da publicação em série, nas próximas edições, das obras póstumas de Allan Kardec:
"Para os assinantes da Revista
Até hoje, a Revista Espírita tem sido essencialmente o trabalho, a criação do Sr. Allan Kardec, como de resto,  todas as obras doutrinárias que ele publicou.
No momento em que a morte o surpreendeu, a multiplicidade de suas ocupações e a nova fase em que o Espiritismo entrava, fizeram com que ele desejasse unir-se a alguns colaboradores convictos, para executar, sob sua direção, obras para as quais já não se julgava suficiente.
Faremos o possível para não nos desviarmos do caminho que ele nos traçou. Mas parece-nos nosso dever consagrar aos trabalhos do mestre, sob o título de obras póstumas, algumas páginas que ele teria reservado se permanecesse corporalmente entre nós. A abundância de documentos acumulados em seu gabinete de trabalho, nos permitirá, por vários anos, publicar em cada edição, além das instruções que ele achar por bem nos dar como Espírito, um desses artigos interessantes que ele sabia como tornar tão bem compreensíveis para todos.
Temos a certeza de satisfazer, assim, os desejos de todos os que a filosofia espírita reuniu em nossas fileiras, e sabem estimar no autor do Livro dos Espíritos, o homem de bem, o trabalhador infatigável e dedicado, o espírita convicto, se esforçando em suas vidas privadas para pôr em prática os princípios que ele ensinou em suas obras." 

Ainda nesta edição é anunciado o Museu do Espiritismo, com o qual sonhara Kardec, assim como as decisões sobre a pedra tumular.



A Revista de Agosto de 1869 traz a criação da Sociedade Anônima, preconizada por Allan Kardec em seu artigo na Revista de Dezembro de 1868.

Sobre os objetivos desta Sociedade prefiro servir-me do texto de Berthe Froppo, em seu opusculo "Muita Luz":

"É bom, penso eu, colocar diante dos olhos dos meus irmãos de fé os artigos e os estatutos da Sociedade anônima. (Ver a Revista do mês de agosto de 1869, página 237).

SOCIEDADE ANÔNIMA

A Sociedade anônima fundada pela Sra. Allan Kardec tem por objetivo tornar conhecido o espiritismo por todos os meios autorizados pelas leis.   Ela tem por base a continuação da Revista Espírita fundada por Allan Kardec, a publicação das obras deste, incluindo suas obras póstumas e todas as obras que tratam do espiritismo".



A Revista e a Sociedade manifestavam, portanto, claramente seu desiderato de publicar postumamente os resultados do trabalho de Kardec.  O que era e é perfeitamente legal. Tanto na legislação incipiente da França na época, como internacionalmente hoje em dia, pela Convenção de Berna -- um texto muito citado mas pouco lido -- que, em seu Artigo 6º, alínea 1, preconiza que os direitos do autor à integridade de seu trabalho se estendem após a morte e, neste caso, segundo a alínea 2 do mesmo artigo, tal direito será exercido "pelas pessoas ou instituições às quais a legislação nacional do país onde a proteção é reclamada atribui qualidade para tal".  Portanto, Amelie, a legítima herdeira, era a pessoa legitimamente credenciada para levar à publicação qualquer trabalho póstumo de Kardec.
Não obstante, alguns "graduados" tupiniquins são de "parecer" que tal procedimento só seria válido se o autor deixasse assinado uma autorização para publicação de suas revisões ou textos inéditos!  Isto não "ecziste", como diria aquele padre falecido.  Nem nunca existiu.  O autor trabalha seus textos, faz suas revisões, sem se preocupar com a morte.  Ninguém sabe quando vai morrer;  ninguém quer morrer.  Todos nós, enquanto vivos, não vamos morrer nunca;  pois a morte, do ponto de vista positivo, só é vivenciada pelos outros.  Existem, claro, alguns que se preocupam com testamentos; mas sobre coisas já definidas e escrituradas. Imaginar-se em alguma época, em algum lugar,  um autor trabalhando, em processo criador e, a cada revisão interrompendo para escrever que autoriza este ou aquele a publicar se ele morrer daí a pouco, é não saber nada, não só dos processos criativos como editoriais.  Ou é "chutar" sem ter o trabalho de imaginar a situação concretamente.  Sempre que um autor morre debruçam-se sobre seu baú em busca de textos inéditos; sempre sob a batuta do herdeiro legítimo.  Se não fosse assim não teríamos a obra prima do Pascal, não teríamos muita coisa de Nietzsche, de Leminski e muitos outros.  Não teríamos um texto do Jaci Régis encontrado em seu computador pessoal e divulgado amplamente.  
Mas, vamos lá. Vamos supor que alguém, mais de século depois de  Kardec, resolva questionar na justiça uma determinada obra (afinal, as teorias conspiratórios rastreadoras de holofotes questionam tanto a existência de um Shakespeare há quinhentos anos, quanto uma descida na Lua há cinquenta!) e ocorra a tragédia (e a tragédia moderna é um certo tipo de juiz) de encontrarmos pela frente, juiz da causa, um desses autores de pareceres.  Daí, para contentá-lo poderíamos mostrar alguma preocupação de Kardec (ainda que remota pois não sabia que morreria em poucos meses) sobre isto.  No artigo já citado, dezembro de 1868, justificando a criação de um "comitê central", ele escreve: "Para completar a obra doutrinária, resta-nos publicar várias obras, que não são a parte menos difícil, nem menos penosa".  E, logo adiante, citando as atribuições do comitê: "8º - A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais adequadas à sua valorização.  A confecção e a publicação das que nós daremos o plano e que não tivermos tempo de fazer em nossa vida".  Servindo-nos dos malabarismos retóricos de algumas seitas do movimento espírita: "obras" de um autor é igual ao "trabalho" do autor;  qualquer trabalho, completado ou não.

Esta é a história do livro "Obras Póstumas", de Allan Kardec que, apesar de editado somente em 1890, teve toda sua parte doutrinária publicada logo em seguida ao desenlace do autor, pela sua esposa e legítima herdeira juntamente com o "comitê", em seguidas edições da Revista, durante os próximos dois anos.
Quanto ao "livro das previsões concernentes ao Espiritismo", inserido no mesmo livro... teríamos que iniciar outra história...