quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

FLAMMARION E OUTROS CIENTISTAS ESPÍRITAS

As Memórias do Camille Flammarion citadas na postagem anterior são deveras interessantes. Mereciam uma tradução completa para o português. Mostram uma alma inquieta; alguém que deseja ardentemente o conhecimento do nosso destino após a morte, mas mantém-se suficientemente lúcido para não abandonar o critério estritamente científico e não cair em certezas precipitadas, mesmo tendo que pagar o preço da angústia permanente da dúvida.
Espiritismo ou animismo? Animismo ou espiritismo? É a gangorra onde ele balança sua angústia por toda a vida.
No Capítulo XIII ele aborda suas experiências espíritas. Faz, também, um breve relato e uma análise dos três cadernos resultantes das experiências realizadas sob a direção do Victor Hugo, quando na ilha de Jersey. Chega a elaborar a hipótese de que a soma dos presentes cria as personalidades comunicantes sob o domínio da mente prodigiosa de Hugo.
Vamos a alguns trechos desse capítulo:

"Ação inconsciente da alma. Mas como?
Existem espíritas de uma fé cega, que têm certeza de estarem em comunicação com os espíritos. Não há como chamá-los à razão. Eles não me perdoam de não compartilhar suas certezas, que se tornaram entre eles crenças religiosas. Mas há outros que compreendem que apenas o método científico pode nos conduzir ao conhecimento verdadeiro. Esses continuam meus amigos. Eu acabei de encontrar numa coletânea de correspondências a carta seguinte que me permito reproduzir, e que parece ter seu lugar aqui. Ela é datada de Bordeaux, 29 de março de 1904:

'Caro mestre,

Há cerca de quarenta anos, ouvi, em Bordeaux, um velho fazer o elogio de um jovem, por volta dos dezoito anos, portador de condições de fato excepcionais. Segundo ele, esse jovem seria um prodígio, que deveria remexer o mundo.
O jovem, era o senhor.
O velho, era Allan Kardec.'
(...)
(J.Bayard).

A carta continua, tecendo elogios ao espírito científico do Flammarion.

Ao final, ele ajunta:

"Publico esta carta, dentre várias, para mostrar que nem todos os espíritas me guardam ressentimento em função do meu método científico. Pode-se repelir o espiritismo, pode-se repelir o cristianismo, sem deixar-se de ser espiritualista. São doutrinas claramente distintas."

A informação desta carta, a análise na Revue à sua obra, e outras manifestações de Kardec deixam clara a predileção e o carinho que o fundador do Espiritismo nutria por ele; e compartilhava com a Amelie que, ao herdar seu espólio, tudo fez para que o jovem astrônomo se tornasse o continuador da obra. Certamente, viam nele o filho que desejariam ter tido. Por mais independente que fosse, ante tanta consideração seus sentimentos não lhe permitiriam apartar-se totalmente da hipótese espírita, e, é bem provável, condicionaram sua abordagem delicada e suas críticas amenas à "obra de feição pessoal", ou à "religião" do amigo, externadas no discurso do sepultamento.
Mas, ainda que sutil, tal abordagem serve como evidência histórica de que os homens de ciência contemporâneos do surgimento do espiritismo criticavam e denunciavam o encaminhamento religioso que Kardec dera ao assunto. Ou seja, para os cientistas, o espiritismo kardecista já nascia religioso.
Comprova isso a manifestação mais dura de Aksakoff, livre de qualquer laço de amizade, conhecida pela recente divulgação de algumas cartas onde critica o aspecto religioso do kardecismo. Também o comprova a introdução de Richet ao seu Tratado de Metapsíquica, onde, apesar de prestar homenagem a Kardec, critica sua vocação religiosa.
René Sudre, em sua Introdução à Metapsíquica Humana, após expor sua tese da prosopopese-metagnomia, primeira edição da hiperestesia indireta do inconsciente do Quevedo, e inventariar as últimas descobertas da psicologia sugerindo sempre o animismo como motor dos fenômenos, finaliza: "Assim o Espiritismo dito "científico", inaugurado por Delanne, parece haver entrado em falência, nada mais sobrando para a grande massa do que o velho Espiritismo moral de Allan Kardec que, em si, não é, de todo, mau, e que serve para levar aos aflitos ilusões consoladoras".
Tudo isso indica que havia, no final do século XIX e começo do XX, duas veredas espíritas: o Espiritismo científico e o Espiritismo religioso. O primeiro, representado por Delanne, Lombroso, Bozzano, Aksakoff, Crookes, Zollner, Geley e outros, reúne os pesquisadores que adotam a hipótese espírita para explicar os fenômenos. O segundo, representado pelos seguidores de Allan kardec (Leymarie, Dennis, Meyer e outros), reúne os que, além, claro, de adotarem a hipótese dos espíritos provocando os fenômenos, têm a certeza de sua identidade e de sua superioridade moral, absorvem respeitosamente seus ensinamentos, e crêem que o Espiritismo é uma revelação divina, consolador prometido, ressuscitador do cristianismo, destinado a inaugurar uma nova era da humanidade. Enfim, se não religião, algo bem parecido.
Como eu já disse em postagem de 01.07.2009, o segmento religioso sobreviveu por uma questão de seleção natural. Vale repetir:

A morte do espiritismo científico e a sobrevivência do espiritismo religioso deveu-se, simplesmente, a uma lei de seleção natural (no caso, na epistemologia, porém equivalente àquela da biologia: é só fazer as necessárias analogias - assim, se não for verdade, ao menos rima, ou seja, se non è vero è piu trovato).
E qual foi a mudança no ambiente (ambiente intelectual, claro) que provocou o desaparecimento do espíritismo científico?
Emergiram, no oceano do conhecimento humano, as pesquisas do inconsciente, trazendo para o meio científico explicações muito mais convincentes para os fenômenos mediúnicos, do que as explicações espíritas. Ante a aceitação de uma nova teoria e prática albergada sob o nome de psicologia -- palavra até então utilizada para a designação de uma disciplina filosófica, e que passa a designar uma ciência --, o espiritismo foi perdendo todas as esperanças de ser aceito como ciência. Consequentemente, sua vertente científica extinguiu-se. Já a vertente religiosa, conseguindo não só aparar como revidar os golpes dados na área do conhecimento em que transitava (a religião), sobreviveu e multiplicou-se.
Hoje, o espiritismo apreendido e praticado como religião é claramente hegemônico em todo o mundo.

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