sexta-feira, 7 de abril de 2017
MORTE DE ALLAN KARDEC - Por Camille Flammarion
Trecho do livro "Mémoires biographiques et philosophiques d'un astronome", 1911, Capítulo XXVI.
Em 31 de março de 1869 o chefe da escola espírita, Allan Kardec, morreu subitamente, com a idade de 65 anos e, em dois de abril foi sepultado no Cimetière du Nord. Eu contei mais acima como iniciei relações com ele em novembro de 1861 (1). Embora meus trabalhos não me permitissem nenhuma assiduidade às reuniões da Sociedade Espírita da qual ele era o presidente-fundador, o comitê dessa Sociedade convidou-me, em seu nome e no da Senhora Allan Kardec, para presidir as exéquias e proferir um discurso. Eu vinha me mantendo afastado desde algum tempo, sobretudo por não admitir que o espiritismo pudesse tornar-se a base de uma religião antes que os fenômenos fossem cientificamente demonstrados e explicados. Contudo, rendi-me ao honroso convite e pronunciei um discurso do qual é oportuno citar certas passagens. Eis alguns extratos. Pode-se ver quanto fiz questão, diante do caixão do próprio fundador, de estabelecer o valor fundamental do caráter científico a ser dado a esses estudos.
"Ao aceitar, com deferência, o convite simpático dos amigos do pensador laborioso cujo corpo terreno jaz agora aos nossos pés, lembrei-me de um triste dia do mês de dezembro de 1865. Pronunciei, então, as supremas palavras do adeus sobre o túmulo do fundador da Livraria Acadêmica, Didier, que foi, como editor, o colaborador convicto de Allan Kardec durante a publicação das obras fundamentais de uma doutrina que lhe foi cara, e que morreu também subitamente, como se o Céu desejasse evitar a esses dois espíritos íntegros as agonias dolorosas da última hora.
"Hoje, minha tarefa é maior ainda, porque desejaria poder representar ao pensamento daqueles que me ouvem, e dos milhares de homens que na Europa inteira e no Novo Mundo se ocupam do problema ainda misterioso dos fenômenos denominados espíritas; - gostaria, disse, poder lhes representar o interesse científico e o futuro filosófico do estudo desses fenômenos (ao qual se dedicam, ninguém ignora, homens eminentes dentre os nossos contemporâneos). Gostaria de lhes fazer entrever os horizontes desconhecidos que o pensamento humano verá se abrir diante de si à medida que aumentar seu conhecimento positivo das forças naturais em ação em torno de nós.
"Este seria, com efeito, um ato importante de se estabelecer aqui, diante desta tumba eloquente: que o exame metódico dos fenômenos chamados equivocadamente de sobrenaturais, longe de renovarem o espírito supersticioso e de enfraquecer a energia da razão, afastam, ao contrário, os erros e as ilusões da ignorância, e serve melhor ao progresso do que a negação ilegítima dos que acham perda de tempo observá-los.
"Como o próprio organizador desta pesquisa lenta e difícil previu, este complexo estudo deve entrar agora no período científico. Os fenômenos físicos, sobre os quais não se insistiu inicialmente, devem tornar-se objeto da crítica experimental, sem a qual nenhuma constatação válida é possível. O método experimental, ao qual nós devemos a glória do progresso moderno e as maravilhas da eletricidade e do vapor, esse método deve apoderar-se dos fenômenos de ordem ainda misteriosa aos quais nós assistimos, dissecá-los, medi-los e defini-los.
"Porque, Senhores, o espiritismo não é uma religião, mas uma ciência; ciência da qual mal conhecemos o a, b, c. Os tempos dos dogmas acabaram. A Natureza abrange todo o Universo, e o próprio Deus, feito outrora à imagem do homem, não pode ser considerado pela metafísica moderna senão como um Espírito na Natureza. O sobrenatural não existe. As manifestações obtidas por intermédio dos mediuns, como as do magnetismo e do sonambulismo, são de ordem natural, e devem ser severamente submetidas ao controle da experiência. Não há mais milagres. Assistimos à aurora de uma ciência desconhecida. Quem poderá prever a quais consequências conduzirá no mundo do pensamento o estudo positivo dessa nova psicologia."
Prossegui, expondo as grandes descobertas da Astronomia e da Fisica, insistindo sobre as diferentes espécies de raios do espectro solar, sobre os invisíveis nomeadamente infra-vermelhos e ultra-violetas, sobre a força psíquica e a circulação dos átomos e terminei convidando todos os amigos da verdade a observar os fatos sem nenhuma idéia preconcebida.
Este discurso marcou uma data na história do espiritismo. O Comitê me ofereceu suceder Allan Kardec como presidente da Sociedade Espírita. Recusei, sabendo que nove entre dez de seus discípulos continuariam a ver lá, durante muito tempo ainda, uma religião mais que uma ciência e, que a identidade dos "espíritos" está longe de ser comprovada.
Isto foi há mais de quarenta anos. Os discipulos de Allan Kardec pouco mudaram sua fé; a maior parte recusa ainda a análise científica, única, entretanto, que pode nos instruir exatamente. Minhas obras sucessivas mostram que segui constantemente o mesmo método, e que para mim, malgrado a ironia de vários dos meus colegas de estudo das ciências positivas, os fenômenos psíquicos devem, daqui em diante, formar um ramo importante da árvore dos conhecimentos humanos.
A propósito dos meus discursos nas exéquias de Allan Kardec e de seu editor, devo declarar que, como já disse em outra circunstância (2), jamais recebi deles qualquer comunicação de além túmulo.
Continuei a me ocupar dessas interessantes questões que tocam de perto o conhecimento do nosso ser; no entanto, eu não poderia negligenciar meus trabalhos essenciais: a astronomia e sua propagação pelos escritos e pela palavra. Minha colaboração no Siècle me forçava, de outra parte, a estudar mais ou menos todos os assuntos da atualidade e a me manter sempre ao corrente dos progressos, cada vez mais rápidos, da ciência.
(1) O blogueiro promete publicar isso mais tarde.
(2) Em trecho anterior o autor conta que Didier prometeu se comunicar, mas nunca o fez.
Assinar:
Postagens (Atom)