sexta-feira, 26 de junho de 2009

AS QUESTÕES CONGRESSUAIS

Nos anais dos congressos internacionais espíritas da fase européia, bem como nas edições da época, pode-se encontrar farto material para se compreender as tendências se formando no seio do movimento, muitas das quais não se resolveram até hoje. É nesse material que buscam subsídios para suas teses os acadêmicos que atualmente se debruçam sobre esse movimento social de difícil definição que é o espiritismo.
Nicole Edelman inicia seu artigo acadêmico (Spiritisme e Politique)com uma pergunta um tanto descabida: "Uma religião ou uma crença pode suscitar uma reflexão ou uma ação política?" Seria de estranhar se assim não fora, ou seja, que as idéias filosóficas ou as crenças religiosas não gerassem estímulos ou justificativas para ações políticas.
Lendo esses textos (anais, teses, etc.) observamos uma certa transformação (ou evolução) nos modos de ação político-social dos espíritas. De uma prática aparentemente voltada para o alheamento, o recolhimento e a atenção ao plano espiritual, Kardec retirou elementos para uma ação concreta no mundo: o auto-aprimoramento, a caridade, a luta pelos direitos civis das mulheres, a luta pelo fim da escravidão, e outros estímulos que encontramos nos seus escritos da Revista Espírita. Os que o sucederam de imediato, ampliaram essa ação. Leymarie, com mais algumas pessoas, criou a Liga de Ensino, que galvanizou toda a França e implantou inúmeras bibliotecas gerando o salutar hábito de leitura identificado até hoje naquela população. Jean Baptiste Godin criou o seu familiansterio, uma das mais concretas contribuições do socialismo utópico. Some-se a isto o engajamento no Caso Dreyfus e a defesa dos judeus, assim como a continuidade daquelas intervenções iniciadas por Kardec. Giovanni Hofman, presidente da União Kardecista da Itália, apresentou no Congresso de 1888 uma tese sugerindo a estimulando a maior atuação dos espíritas nas esferas políticas e sociais.
Entretanto, uma mudanpa foi ocorrendo ao longo do tempo no sentido de maior ênfase à transformação individual, em detrimento, de certa forma, da ação social. Isto talvez se explique porque os herdeiros imediatos de Kardec, formados naquela atmosfera de positivismo e encantamento com o porvir do homem e da humanidade, foram envelhcendo e sendo substituídos por novos ativistas, formados já na atmosfera de desencantamento e ruína de deuses e valores humanistas, característica daquela passagem de século. A hecatombe da grande guerra (1914/18), corroendo o verniz de civilização com que os homens se haviam adornado e mostrando a verdadeira face bárbara da espécie, foi, talvez, o golpe de misericórdia nas esperanças de todas as mentes progressistas e, particularmente dos espíritas, levando líderes como Léon Denis, Jean Meyer e Conan Doyle a se refugiarem na intimidade do contato com os espiritos e numa consequente ação mais voltada para a reforma íntima e a caridade. Esses acontecimentos reforçaram a tendência religiosa do movimento, e, isto influenciou o movimento no Brasil muito mais do que a cultura deste país.
O fato é que o movimento espírita, antes pujante e influente, praticamente desapareceu na Europa, dando lugar a novos titãs -- comunismo, fascismo, capitalismo -- a se digladiarem no palco da história. O Espiritismo, então, hibernou no Brasil, reciclou-se, e retorna à Europa na esteira do fracasso dessas ideologias, tanto as vencidas como a vencedora.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O MITO DAS TRADUÇÕES DO HERCULANO

Lá pelos anos 70, quando se desenrolava aquele entrevero entre o Herculano Pires e a FEESP - Federação Espírita do Estado de São Paulo (mais o Paulo Alves Godoy,) por conta da esdrúxula tradução do O Evangelho Segundo o Espiritismo, um amigo meu, por sinal sujeito humilde e trabalhador acostumado a concretizar em ações o tão decantado amor ao próximo, disse-me que o Herculano plagiava as traduções do Guillon Ribeiro, alterando algumas palavrinhas aqui e ali para disfarçar. Fiquei escandalizado e atribui o dito ao seu exagerado e ingênuo federativismo. Afinal, como todos os espíritas progressistas, eu admirava e admiro o Herculano como o nosso filósofo maior. Essa admiração, todos nós projetamos em suas traduções: são as melhores, as mais fiéis, as únicas confiáveis... Isto tudo, somando-se à rejeição intelectual à FEB e suas traduções, ultimamente acusadas de tudo o que consideram ruim no movimento espirita: religiosismo, pieguismo, roustainguismo, etc., criam uma certa auréola mitológica em torno das traduções do Herculano.
Mas, é impossível plagiar uma tradução sem deixar pistas.
Dias atrás, um jovem navegador do orkut, querendo talvez exercitar sua auto-imputada ortodoxia, questionou a utilização do termo oxalá na "codificação". Tratava-se de uma intervenção do espírito São Luis, na comunicação da rainha de Oude, no Capítulo VII, Segunda Parte, do livro O Céu e O Inferno, assim traduzida pelo Guillon:

S. Luís. — Deixai-a, a pobre perturbada. Tende compaixão
da sua cegueira e oxalá vos sirva de exemplo. Não
sabeis quanto padece o seu orgulho.

(site da FEB)

Fui conferir no original francês:

Saint Louis. Laissez-la, la pauvre égarée ; ayez pitié de son
aveuglement ; qu'elle vous serve d'exemple, vous ne savez pas combien
souffre son orgueil."


Uái, cadê o oxalá?

Vamos ver como o Herculano, o mais fiel, traduziu.
No site
http://www.freewebtown.com/novomilenium/PDF005/OCeueoInfJHP.pdf, encontrei uma reprodução de sua tradução:

S.Luís — Deixai-a, a pobre perturbada. Tende compaixão da sua cegueira e oxalá vos sirva ela de exemplo. Não sabeis quanto padece o seu orgulho.

Viram? A opção literária que Guillon fez, acrescentando oxalá (poderia ser tomara), coincidentemente também ocorreu ao Herculano.
E mais. A palavra egarée poderia ser traduzida por extraviada, perdida, doida, alucinada, enlouquecida. No entanto, a opção de Guillon por perturbada ocorreu a ambos, de novo numa tremenda coincidência.
Coincidência que também ocorreu na escolha de padecer por souffre; assim como, na transformação do que era uma frase só ("que ela vos sirva de exemplo, não sabeis quanto sofre seu orgulho"), em dois periodos.

Continuo admirando a acuidade intelectual e o tino filosófico do Herculano. Mas, quanto às traduções, sem aderir àquela aceitação quase unânime que se observa.

Para quem se interessar, eis a ficha do facsímile original francês que encontrei:

Título : Le ciel et l'enfer ou La justice divine selon le spiritisme : contenant l'examen comparé des doctrines sur le passage de la vie corporelle et la vie spirituelle, les peines et les récompenses futures / Allan Kardec
Autor : Allan Kardec (1804-1869)
Editor : P. Leymarie (Paris)
Data de publicação : 1913
Língua : Françês
Formato : application/pdf
Direitos : domaine public
Senha : http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k55184b
Fonte : Bibliothèque nationale de France, département Philosophie, histoire, sciences de l'homme, 8-R-29855
Relação : http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb31711365k/description
Procedência : bnf.fr

domingo, 14 de junho de 2009

OS CONGRESSOS ESPÍRITAS

Afinal, Kardec venceu. Sua proposta de congressos periódicos que manteriam o espiritismo atualizado, aconteceu. Desde seu desencarne prematuro naquele indesejado aneurisma de 31 de março de 1869, os congressos se realizaram. Inicialmente, foram regionais, francofônicos, porém com participação de pessoas de vários idiomas. Em 1888, em Barcelona, a série assumidamente internacional se inicia, e sucede-se até o último da fase européia, realizado também em Barcelona em 1934.
Daí, uma sombra tenebrosa escurece os corações humanos: o avanço do fascismo. E a mobilização das forças progressistas contra esse fantasma, enseja uma luta que ceifa milhões de vidas, e suspende temporariamente atividades esportivas, científicas e culturais de cunho internacional. O movimento espírita não seria poupado: encerra-se a fase de liderança européia.
Os congressos de alcance extra-nacionais vão se reiniciar em 1947, em Buenos Aires, caracterizando uma fase latino-americana na liderança do movimento espírita. Sucedem-se a partir daí os Congressos Espíritas Panamericanos, que geram a Confederação Espirita Panamericana - CEPA, que hoje promove também congressos de âmbito internacional.
Mas o início da nova fase de congressos realmente mundiais acontece no final do século, por um trabalho da FEB, cuja crescente influência ideológica e editorial gerou o Conselho Espírita Internacional, que também promove congressos mundiais, sendo o próximo marcado para Valença, Espanha, em 2010.

Como não poderia deixar de ser, os congressos refletem as tendências gestadas dentro do movimento espírita. Hoje em dia as duas principais tendências manifestam-se separadamente, de maneira aparentemente irredutível, nos congressos da CEPA e do CEI: na primeira, o laicismo e a insistência na afirmação científica do espiritismo; no segundo, uma afirmação religiosa e cristã.
Nos congressos da primeira fase (1888/1934) as tendências se encontravam no mesmo evento e tendiam a reduzir-se numa ação comum. Nesses congressos, os discursos, refletindo as tendências, podem ser divididos assim:
- exaltação do espiritismo, suas maravilhas e as benesses que a humanidade recebe dele;
- confirmação dos fatos espíritas, recorrendo sempre à relação de sábios que pesquisavam e comprovavam tais fatos:
- convocação para um trabalho de intervenção social e política por parte dos espíritas;
- preocupação com sua identidade: científica e/ou religiosa.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

DESPERTAR DE INTERESSE

Pode-se observar um crescente número de trabalhos acadêmicos franceses sobre o espiritismo nas áreas de história, sociologia e antropologia; enfim, nas áreas que estudam os movimentos sociais e humanos. Todos eles fazem um retrospecto histórico do espiritismo e reconhecem que hoje em dia não há, nem de longe, o interesse que havia no final do século XIX e começo do século XX. De fato, não há cientista, escritor ou político daquela época que não tenha citado, rechaçado, ridicularizado ou aderido ao espiritismo. Nenhum lhe ficava indiferente. Os estudiosos de hoje, em tais trabalhos acadêmicos, tentam relacionar as causas da decadência do movimento espírita, ou do adormecimento do interesse no assunto. Dentre as várias causas levantadas, há quase unanimidade em duas: a condenação da Igreja e o progresso da psicologia e psiquiatria, trazendo explicações mais sedutoras com os estudos do inconsciente. É preciso levar-se em conta, também, a dificuldade dos intelectuais assimilarem uma ciência parecida com religião, ou uma religião que queria ser ciência.
Mas, por que tanto interesse ressurgindo por algo que decaiu? Por que tanta atenção dedicada a algo que deixou de despertar o interesse dos sábios lá pelos anos 30? A resposta é: porque o espiritismo voltou à ordem do dia. Desde algumas décadas, o Divaldo, talvez o espírita mais conhecido e viajado que existiu, vem disseminando esse conhecimento e esse movimento, muitas vezes à sombra de ditaduras que até há bem pouco assombravam terras européias. Além disso, a inversão do fluxo migratório da humanidade -- que antes parecia vir toda ao Brasil e, de duas décadas prá cá parece derramar-se deste país continente para o mundo. O espiritismo é bastante difundido no segmento social que mais fornece jovens para a emigração. Acrescente-se a isto uma certa importância econômica que o Brasil vem adquirindo no mundo (não sei exatamente se como parceiro, como esperto ou como otário). O fato é que tudo isso somado levou a um crescimento de agrupamentos espíritas em várias partes do mundo, principalmente na Europa. Daí, os franceses começam a se interessar por um movimento de idéias aparentemente exótico mas iniciado por um conterrâneo deles. Afinal, devem pensar, que jabuticaba francesa é essa que desconhecemos? E, ao pesquisar, conhecem que já foi algo bastante presente na mídia e na sociedade em geral num tempo passado antes de tudo, ou seja, antes que a hecatombe de uma guerra mundial que foi mais intensa no quintal de casa, e o esforço amargo da reconstrução eclipsassem uma série de idéias e movimentos que agora ressurgem.

domingo, 7 de junho de 2009

ESPIRITISMO E POLÍTICA

Preciso atualizar esse blog, não é mesmo? Mas, vou fazê-lo em breve.
Estou lendo um texto muito interessante: Spiritisme et politique; de Nicole Edelman, apresentada como Maitre de Conferences à l'Université Paris 10; elaborado em 2004. Pretendo comentá-lo nas próximas postagens, juntamente com o artigo que Giovanni Hoffman, da Academia Internacional de Estudos Espíritas e de Magnetismo de Roma, apresentou no Congresso de 1888, com o título: Da necessidade de uma Federação Espírita Universal e de seu objetivo moral, social e político.

Mas, o que eu achei muito interessante e me apresso em contar, é que a Nicole diz, no artigo, que o Pierre-Gaetan Leymarie, discípulo de primeira hora e continuador de Kardec, exilou-se no Brasil(!) em 1851, quando o Luís Napoleão Bonaparte deu o golpe de estado e tornou-se o Imperador Napoleão III. Não vi esta informação em nenhum outro lugar, e ela não cita a fonte. Logo depois houve a anistia, ele retornou a Paris, e tornou-se colaborador de Kardec.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

VERDADES INCONCUSSAS?! OU VÉRITÉS ACQUISES?

"Uma assembléia para a qual se convocassem todos os que se dizem espíritas apresentaria um amálgama de opiniões divergentes, que não poderiam assimilar-se reciprocamente..." escreveu Kardec, prevenindo, com seu conhecido bom senso, uma situação semelhante à qual vivemos hoje em dia. Daí, bateu na mesa (intelectualmente, claro!) e afirmou arbitrário: "Criamos a palavra Espiritismo, para atender às necessidades da causa; temos, pois, o direito de lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita!" Assim escreveu em 1866; morreu em 1869 e, portanto, em 1929 perdeu definitivamente tal direito para o domínio público.
Mas, ele tentou. Delineou as balizas de uma constituição do espiritismo, onde imaginou uma comissão central para o dia-a-dia e, congressos periódicos para definir as possíveis ou necessárias atualizações. Chegou a imaginar um formulário de adesão onde, prá ser considerado espírita, o adepto faria sua profissão de fé; o que, segundo ele mesmo, criaria a categoria dos espíritas professos (sic). Terminou por escrever: "Pela sua essência mesma, o Espiritismo toca em todos os ramos dos conhecimentos físicos, metafisicos e morais; as questões que ele envolve são inumeráveis; todavia, elas podem se resumir nos pontos seguintes que, sendo consideradas verdades adquiridas, constituem o programa das crenças espíritas". E... caput! Morreu sem enumerar os "pontos seguintes". (E eu fico me perguntando onde o Guillon Ribeiro foi buscar a expressão: verdades inconcussas!)
Alguns congressos foram convocados, após Kardec; principalmente em Bruxelas. Apesar de convidarem pessoas de vários países, não lhe davam um escopo mundial ou universal.
O primeiro ao qual ousaram dar esse status foi o Congrès International Spirite de Barcelone de 1888. Ali, os princípios fundamentais são expostos, tanto no discurso inicial feito pelo presidente da comissão, quanto nas conclusões do congresso.

No discurso de Torres Solanot:
- existência de Deus;
- imortalidade do espírito;
- pluralidade dos mundos habitados;
- pluralidade das existências da alma;
- progresso indefinido;
- afirmação de que a filosofia do Espiritismo deverá sempre se apoiar sobre a ciência e a razão.


Nas conclusões do congresso, indicando talvez a diversidade das tendências, consta como fundamentos do Espiritismo:

Existência de Deus - Imortalidade da alma - Preexistência: Reencarnação - Pluralidade dos mundos habitáveis e habitados - Progresso indefinido - Prática do bem, e o trabalho como meio de o realizar.
Recompensas e expiações futuras, em razão dos atos voluntários - Reabilitação e felicidade para todos - Comunhão universal dos seres - Comunicação com o mundo dos espíritos - Em direção a Deus, pelo amor e pela ciência - Fé racional - Esperança e resignação - Caridade para todos.


Solanot deu a entender que os principios fundamentais seriam definidos no próximo congresso, a se reunir em Paris, em 1889, que acabou tomando o nome de Congrès Spirite et Spiritualiste International, e contou com a presença até do Eliphas Levi. Não consegui encontrar nenhum oferecimento de download gratuito dos relatos desse congresso. Encontrei, sim, uma ótima oferta de ocasião de um exemplar original do livro num sebo de Paris, segundo eles em bom estado, ao preço de 145 euros, o que, acrescido do frete deverá ficar em torno de 500 reais! Muito para o meu bolso no momento. Quem quiser adquiri-lo, o endereço é este:

http://www.chapitre.com/CHAPITRE/fr/BOOK/collectif/compte-rendu-du-congres-spirite-et-spiritualiste-international-de-1889-tenu-a-pa,8953023.aspx

No livro Obras Póstumas, Leymarie cita que o congresso espírita e espiritualista de 1890 (como se vê, faziam congresso todo ano) criou uma comissão de propaganda com a incumbência de gerar um livro atualizando os princípios fundamentais do espiritismo, que seria revisado no próximo congresso.
Deste congresso de 1890, não econtrei ainda nenhuma referência virtual.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

MITO E TABU

De início eu não notava que era um tabu. Afinal, desde que aportei a uma mocidade espírita, no final dos anos 60, fui treinado direitinho para responder sobranceiro a qualquer neófito: "kardecismo não existe!" O jovem é apaixonado; e todo apaixonado é radical; e todo radical é intolerante. Porém, a idade, se a alguns dá tolerância, a outros toma o pouco que têm; com ou sem justiça, me orgulho de tê-la aumentado. Apenas sinto ao ver ainda hoje quarentões, cinquentões e até sessentões arrepiarem e tremerem suas veneráveis cãs ao ouvirem o termo kardecismo, interrompendo, de imediato, ou prejudicando qualquer diálogo esclarecedor com quem sob tal palavra os procura. Não deveria estranhar: todas as religiões criam seus tabus em torno de certas palavras (mesmo aquelas que juram por tudo que lhes é mais sagrado que não são religiões!). Nas comunidades orkutianas, quando vejo a agressiva ojeriza ao termo em questão, não posso deixar de lembrar do filme "A Vida de Bryan", o episódio em que o judeu vai ser apedrejado porque disse a palavra proibida "Jeová": quando viu que ia morrer mesmo, desandou a gritar: "Jeová"... "Jeová"...
Mas, onde entra o mito? O mito é que, mais uma vez, atribuem ao movimento espírita brasileiro o que consideram um erro, no caso, a criação do termo kardecismo!
"Ensinam", a maioria dos internautas, que os brasileiros cunharam o termo na esteira de seu preconceito contra as religiões afro-brasileiras. Seja porque Bezerra, em sua magnanimidade, albergou tais religiões quando fundou a Federação, seja porque todos transitam na mesma fenomenologia, o povo consagrou o uso da palavra espiritismo para um amplo leque de crenças e práticas; assim, alguns teriam se levado pelo orgulho e cometido o erro de criar o termo kardecismo para sua autodefinição. O que se torna um sacrilégio, uma vez que Kardec insistiu em seus escritos que a doutrina não é dele, e, sim, dos espíritos; e, se Kardec falou, tá falado: cumpra-se! Afinal, somos uma religião? ou não?
O bom em tudo isto é que, mais uma vez, graças à virtualidade, podemos desmitificar uma lenda recorrente no meio espírita.
Pois, em 1918, o primeiro biógrafo de Allan Kardec, Henri Sausse, funda, em Lyon, Le Spiritisme Kardeciste. Chegaria a ser megalomania achar que o incipiente espiritismo brasileiro tenha influenciado no nome do jornal em data tão remota.
Mas não é só. Havia, ainda no século XIX, uma União Kardecista Italiana(!), que foi representada por Gabriel Delanne no congresso internacional de Londres, em 1898.
E muitos de nós conhecemos l'Union Spirite Kardeciste Belge, que por várias décadas suportou solitária as edições das obras de Kardec em francês.
Concordo em que se prefira o termo espiritismo a kardecismo. Mas, daí a dizer-se que se trata de um produto tão brasileiro quanto a jabuticaba, vai uma distância muito grande.

terça-feira, 2 de junho de 2009

REALMENTE, A VIRTUALIDADE É UMA MARAVILHA

Consegue-se mais coisas navegando-se virtualmente do que arrastando o potencial cadáver por ares e mares cada vez mais ameaçados pelas mudanças climáticas. Eu e a Renate já estivemos em Paris; nos idos do evanescente século XX, numa Europa pré-euro, pré-internet, pré-quase-tudo. Chegamos até a biblioteca nacional e à biblioteca da Sorbonne; mas, as comemorações da semana do armistício, potencializadas pelo frenesi do fim do milênio, congestionavam ou bloqueavam grande parte dos redutos culturais; restando-nos enfatizar os museus e pontos turísticos tradicionais e, claro, as sempre inadiáveis compras.
No entanto, hoje, apenas uma década depois, refazemos com vantagens a estonteante visita ao Museu D'Orsay, e, na sequencia, sem sair da cadeira, devassamos como ratos indiscretos o acervo digitalizado da BnF, a biblioteca nacional da França, violando com nossos olhos caipiras as raríssimas edições dos séculos anteriores.
Daí, minha insaciável curiosidade pode embriagar-se de dados sobre a história do espiritismo pós-Kardec e pré-Chico, e desfazer na minha mente certos mitos iconoclastas da crítica ao movimento espírita brasileiro.
Um deles, é que o prestígio e a penetração das idéias do Roustaing é algo tipicamente tupiniquim, devido à tradição católica do nosso povo, não encontrando contra-partida no ambiente espírita francês contemporâneo de Kardec ou no período próximo subsequente.
Ora, lendo o resumo do Congresso Internacional Espírita de Barcelona, de 1888, cuja fonte está descrita no primeiro texto deste blog, vemos, em vários discursos, incluindo o do M. Leymarie, sucessor de Kardec na Revista, na Sociedade e nas edições de seus livros, alusões tranquilas e diretas a Roustaing, colocando-o ao lado do mestre na formação doutrinária. Portanto, Roustaing não foi "contrabandeado" pelo Bezerra ou Olímpio, quando do início da implantação do espiritismo nessas paragens tropicais. Ele veio legalmente, com visto de residência e no mesmo camarote que o caro lionês. Se há equívocos -- e acredito que haja, pois não comungo com certas idéias estranhas de quedas de anjos e corpos fluídicos --, vieram no mesmo pacote que a "codificação".
Principalmente se cotejarmos esse fato com a permissividade do próprio Kardec que o colocou como sugestão de leitura e aquisição no Catalogue raisonné pouvant servir à fonder une bibliotèque spirite, outro texto disponibilizado graças à tecnologia moderna.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

PRIMEIRA TENTATIVA DE ENSINO OFICIAL DO ESPIRITISMO

Melhor dizer "talvez a primeira"; pois, sempre se encontra uma anterior.
Uma proposição foi apresentada durante a primeira legislatura das câmaras constituintes da república espanhola (I República), pelos espíritas que se elegeram deputado: José Navarette, Anastasio Gracia Lopez, Luis F. Benitez de Lugo, Manuel Corchado e Mamés Redondo Franco, defendida com eloquencia pelo primeiro. Tratava-se de declarar que o estudo do espiritismo passaria a fazer parte do ensino secundário universitário. A dissolução das Câmaras abortou esse importante movimento. Vale lembrar que a I República Espanhola durou do início de 1873 até o final de 1874, quando foi extinta por um pronunciamiento do General Martinez Campos, que restaurou os Bourbons. A II República, proclamada já na década de 30 do século XX, durou um pouco mais, tendo também sido extinta por um pronunciamiento, dessa vez do General Franco, que, após aquela sangrenta guerra civil, novamente restaurou os Bourbons.

Eis o programa defendido pelo deputado Navarette:

PROGRAMA DE UM CURSO ELEMENTAR DE ESPIRITISMO

Prolegômenos - Noções de cosmologia e antropologia
Tratados sumários:
1o. Pluralidade dos mundos habitáveis e habitados - Cosmografia comparada
2o. Conceito de Espírito - Vida livre - Encarnações
3o. Teoria do progresso - Progresso universal indefinido
4o. Fundamentos da Filosofia, da Moral e da Religiao - Sintese Espírita
5o. Ideal social humano
6o. Espiritismo experimental - Magnetismo, sonambulismo lúcido, fenômenos espontâneos e sistemas de comunicação com o mundo invisível.


Fonte: CONGRÈS INTERNATIONAL SPIRITE DE BARCELONE, 1888
Résumé publié sous la direction du Presidente de la Comission Permanente,
M. Torres Solanot;
Librairie des Sciences Psychologiques; Paris; 1889
http://gallica.bnf.fr/