(Publicado em 10.03.2018, no grupo "Espiritismo - Estudos Avançados", do Facebook)
Estabeleceu-se um falso paradigma: "já está comprovado que houve adulteração ilegítima na Gênese!"
E julgando-se de posse da verdade definitiva pretendem escrever a história futura sobre este suposto paradigma.
No entanto, se há uma verdade, é que não há qualquer comprovação de que a Gênese tenha sido alterada por Leymarie ou alguém da comissão central. E, ausência de provas não prova nada!
O que há de fato é que (e isto se levanta até com a ajuda da última pesquisa): assim que os dramáticos acontecimentos políticos, sociais e financeiros na França do início dos anos 1870 o permitiram, os continuadores de Kardec (isoladamente ou em conjunto - esposa, gerentes, etc. - isto não há como saber; não haviam câmaras nas ruas nem nas casas) pegaram o calhamaço da Genese "revisada, corrigida e aumentada", que eles criam ou supunham deixado pelo autor, fizeram o depósito legal no Ministério do Interior, sem contestação, fizeram o depósito legal na BNF, sem contestação, imprimiram, venderam e divulgaram, sem contestação, um pesquisador colocou em seu catálogo das edições francesas, sem contestação e, doze anos depois da publicação, após a morte da principal testemunha e colaboradora do autor, após o envelhecimento de outras testemunhas, quando evidentemente não se esperava ainda existir qualquer rascunho ou manuscrito, Henri Sausse, no calor de uma intensa peleja contra o Pierre-Gaëtan Leymarie, contesta! Porém, sua contestação foi contestada. Se a contestação da contestação foi canhestra, torta, risível, etc., foi, ao menos, eficaz: todos os espíritas e toda a cultura da época se acomodaram com a quinta edição como definitiva. O único fato posterior a este, antes da mudança de Século, foi a publicação de "Obras Póstumas", em 1890, com duas anotações de Kardec feitas durante o ano de 1868, dizendo que estava fazendo "acréscimos e supressões" em sua Gênese. Isto também ninguém contestou na época, quando seria (ou foi) possível a apresentação de documentos comprobatórios, como manuscritos ou assemelhados. A história se consumou, todo o mundo passou a editar e traduzir a versão "revisada, corrigida e aumentada", a outra versão foi esquecida e adormeceu, enquanto o mundo deslizava para o Século mais violento, veloz e estonteante de toda a saga humana. Até que, ao fecharem-se as cortinas do Século XX, Carlos Brito Imbassahy, por razões equivocadas mas num ato isolado de determinação e coragem, resgatou a primeira versão da Gênese, numa tradução disponibilizada gratuitamente na internet.
As circunstâncias históricas irreversíveis do final do Século XIX enriqueceram a cultura humana com uma segunda versão da Gênese de Kardec. Ficamos com duas ótimas versões, cada uma com suas qualidades e defeitos, porém, equivalentes em importância e direito de cidadania. Intensos debates surgiram após o resgate da versão esquecida, seguidos de pesquisas serenas e imparciais, que não lograram estabelecer um conhecimento preciso dos fatos ocorridos há século e meio.
Não houve nenhum fato novo, não se descobriu nenhuma novidade que fizesse pender a balança em favor de qualquer das duas partes em conflito no século XIX, quando o Sausse afirmava que houve uma infamante adulteração da obra, e o Leymarie dizia que a infâmia recaía sobre quem acusava sem provas.
Agora, surge uma campanha massiva e maciça, apoiada por tradicionais instituições espíritas, com adesões entusiasmadas de espíritas que, muitos deles, isto não se pode negar, não mergulharam na história e nunca chegaram a comparar as duas versões (oxalá tenham lido inteiramente uma delas que seja) e, baseados numa pesquisa que, se bem tenha sido árdua, sacrificiosa, desinteressada e heróica, foi, ao mesmo tempo, equivocada, ingenuamente falaciosa e precipitada em afirmar uma certeza sem nenhum fato novo que a justifique e, pretende (a campanha, não a pesquisa), anatematizar, destruir, rejeitar e lançar no esquecimento uma das versões. Como se houvesse senso em uma vingança: resgatar a edição esquecida por um século e aplicar o mesmo castigo do esquecimento à outra.
Ora, a história nos brindou com duas versões; como tributo, dissolveu em suas brumas do tempo todo e qualquer fato, documental ou não, que nos permitisse negar com certeza que o autor empenhou horas de trabalho revisando sua obra.
Não. Não haverá um retardatário e nostálgico auto de fé para a imolação de nenhuma das duas versões.
Não se muda a história ao prazer de grupos ou ao sabor de embates políticos intra-institucionais. A história, forjada por todos os homens é maior e mais forte do que cada um deles ou de qualquer grupo em separado. E, a história gerou duas versões de uma mesma obra. Ninguém vai mudar isto. Não haverá um "Fahrenheit 451" para nenhuma obra em especial. Biblioclastas "no pasarán"!
(João Donha)