(Publicado em 01.05.2018, no grupo "Espiritismo - Estudos Avançados" do Facebook.
Refiro-me a essas frases pinçadas da kardequiana e colocadas - totalmente fora do contexto, claro - em bandeirolas coloridas nos diversos grupos desta rede.
Houve uma época em que proliferaram os "cursos de espiritismo em apostilas".
Se há mercado, por que não a mercadoria?
A maioria das pessoas não gosta de ler livros. Acham-nos extensos demais. E, quando lêem o fazem muito mal. Ou seja, até conseguem unir as letrinhas e reconstruir as palavrinhas; mas, não sabem interpretar. Não digo que o seja por ignorância; talvez pela pressa.
Daí, o sucesso das apostilas e, agora em rede, dos "banners".
Que não seja o próximo passo o simples grito, como alertou Saramago. É preciso observar ainda que o tom dogmático dos "banners" toca o cantinho medieval mal adormecido da alma. O problema é que facilita aos autores (dos "banners" e das "apostilas") as falácias fúteis, fluidas e fáceis, para ficarmos na "efelogia" do saudoso MalbaTahan.
Recentemente vi um caso emblemático dessa tragédia.
Todos sabemos da discussão bizantina que sempre houve no movimento espírita quanto ao caráter da doutrina: "é religião", "é apenas religiosa", "tem religiosidade", "é religião em sentido filosófico", "não é religião", "não tem nada de religião", e por aí afora vão desenrolando as mais variadas opiniões.
Nada contra nenhuma opinião. Confesso minha indecisão (ou ignorância) quanto ao assunto.
Mas vai daí, um operoso militante da opinião de que não deve ter nada de religião, lança um "banner" com uma frase bombástica, letras negras em fundo claro: "O ESPIRITISMO É UMA CIÊNCIA PURAMENTE FILOSÓFICA; NÃO SÓ NÃO É UMA RELIGIÃO, COMO NÃO DEVE TER NENHUM CARÁTER RELIGIOSO. Allan Kardec. RE 1866". Estas aspas são minhas, para delimitar o que estava no "banner".
Em face desta frase e, sem o cuidado de ler (com atenção) o texto completo, o que se entende? Que Kardec expressou, em algum momento, a opinião de que o "espiritismo é uma ciência puramente filosófica" e que "não deve ter nenhum caráter religioso" (atentem para o "puramente" e o "nenhum", palavras que conferem o tom radical e dogmático à frase). E, pois, foi justamente assim que a frase foi entendida, o que se nota pelos comentários subsequentes.
Afinal, tal frase existe? Sim, existe. Está na RE 1866? A resposta também é sim. Foi escrita por Kardec? Mais uma vez, sim. Então, onde está a falácia? A falácia está em que a frase, fora do contexto, foi apresentada e recebida como uma opinião de Kardec. E, Kardec nunca expressou tal opinião!
No texto em questão Kardec está defendendo a utilidade da prece, inclusive nas reuniões espíritas. Procurando discutir a opinião dos que acham inútil a prece no espiritismo, ele resume os três principais argumentos dos que assim pensam. Essa frase, colocada por ele entre aspas em sua publicação original, resume, portanto, um dos argumentos dos que combatem o uso da prece. Assim, esta frase representa, na verdade, uma opinião contrária à de Kardec. Opinião que ele contesta na sequencia do seu artigo, dizendo que o espiritismo faz "filosofia experimental e não especulativa" (o que se contrapõe a "ciência puramente filosófica") além de, aqui como alhures, conferir "algum" caráter religioso, por menor que seja, à sua doutrina: "religião em sentido filosófico", "assembleias feitas religiosamente sem que isto a torne religião", e outras colocações semelhantes.
Nossa intenção não é criticar ou afrontar este ou aquele, mas, simplesmente, chamar a atenção para a necessidade da leitura das obras de um autor para conhecer realmente seu pensamento. Ao mesmo tempo, alertar para o fato de que, se é temerário aprender espiritismo por apostila, por "banner" é pior ainda.
(João Donha)
Refiro-me a essas frases pinçadas da kardequiana e colocadas - totalmente fora do contexto, claro - em bandeirolas coloridas nos diversos grupos desta rede.
Houve uma época em que proliferaram os "cursos de espiritismo em apostilas".
Se há mercado, por que não a mercadoria?
A maioria das pessoas não gosta de ler livros. Acham-nos extensos demais. E, quando lêem o fazem muito mal. Ou seja, até conseguem unir as letrinhas e reconstruir as palavrinhas; mas, não sabem interpretar. Não digo que o seja por ignorância; talvez pela pressa.
Daí, o sucesso das apostilas e, agora em rede, dos "banners".
Que não seja o próximo passo o simples grito, como alertou Saramago. É preciso observar ainda que o tom dogmático dos "banners" toca o cantinho medieval mal adormecido da alma. O problema é que facilita aos autores (dos "banners" e das "apostilas") as falácias fúteis, fluidas e fáceis, para ficarmos na "efelogia" do saudoso MalbaTahan.
Recentemente vi um caso emblemático dessa tragédia.
Todos sabemos da discussão bizantina que sempre houve no movimento espírita quanto ao caráter da doutrina: "é religião", "é apenas religiosa", "tem religiosidade", "é religião em sentido filosófico", "não é religião", "não tem nada de religião", e por aí afora vão desenrolando as mais variadas opiniões.
Nada contra nenhuma opinião. Confesso minha indecisão (ou ignorância) quanto ao assunto.
Mas vai daí, um operoso militante da opinião de que não deve ter nada de religião, lança um "banner" com uma frase bombástica, letras negras em fundo claro: "O ESPIRITISMO É UMA CIÊNCIA PURAMENTE FILOSÓFICA; NÃO SÓ NÃO É UMA RELIGIÃO, COMO NÃO DEVE TER NENHUM CARÁTER RELIGIOSO. Allan Kardec. RE 1866". Estas aspas são minhas, para delimitar o que estava no "banner".
Em face desta frase e, sem o cuidado de ler (com atenção) o texto completo, o que se entende? Que Kardec expressou, em algum momento, a opinião de que o "espiritismo é uma ciência puramente filosófica" e que "não deve ter nenhum caráter religioso" (atentem para o "puramente" e o "nenhum", palavras que conferem o tom radical e dogmático à frase). E, pois, foi justamente assim que a frase foi entendida, o que se nota pelos comentários subsequentes.
Afinal, tal frase existe? Sim, existe. Está na RE 1866? A resposta também é sim. Foi escrita por Kardec? Mais uma vez, sim. Então, onde está a falácia? A falácia está em que a frase, fora do contexto, foi apresentada e recebida como uma opinião de Kardec. E, Kardec nunca expressou tal opinião!
No texto em questão Kardec está defendendo a utilidade da prece, inclusive nas reuniões espíritas. Procurando discutir a opinião dos que acham inútil a prece no espiritismo, ele resume os três principais argumentos dos que assim pensam. Essa frase, colocada por ele entre aspas em sua publicação original, resume, portanto, um dos argumentos dos que combatem o uso da prece. Assim, esta frase representa, na verdade, uma opinião contrária à de Kardec. Opinião que ele contesta na sequencia do seu artigo, dizendo que o espiritismo faz "filosofia experimental e não especulativa" (o que se contrapõe a "ciência puramente filosófica") além de, aqui como alhures, conferir "algum" caráter religioso, por menor que seja, à sua doutrina: "religião em sentido filosófico", "assembleias feitas religiosamente sem que isto a torne religião", e outras colocações semelhantes.
Nossa intenção não é criticar ou afrontar este ou aquele, mas, simplesmente, chamar a atenção para a necessidade da leitura das obras de um autor para conhecer realmente seu pensamento. Ao mesmo tempo, alertar para o fato de que, se é temerário aprender espiritismo por apostila, por "banner" é pior ainda.
(João Donha)
Muito bom esse texto. Obrigada!
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