"Em filosofia, em psicologia, em moral e em religião, só é verdadeiro o que não se afaste, nem um iota, das qualidades essenciais da Divindade". Kardec, G,II,19.
"Todas essas maneiras de encarar o instinto são necessariamente hipotéticas e nenhuma tem uma característica suficiente de autenticidade para ser tida como a solução definitiva. A questão, por certo, será resolvida, um dia, quando estiverem reunidos os elementos de observação que ainda faltam. Até lá, é preciso nos limitarmos a submeter as diversas opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será, com certeza, a que melhor corresponda aos atributos de Deus, isto é, à soberana bondade e à soberana justiça". Kardec, G,III,17.
Será que podemos tomar este método como científico?
Sem dúvida nenhuma, é um bom critério aceitarmos como verdadeiro apenas aquilo que não se afaste das "qualidades essenciais da Divindade". Mas, na Religião! É perfeitamente factível que um crente, ao decidir se suas conjecturas sobre o sexo dos anjos (ou sobre o dragão na garagem do Sagan) são verdadeiras consulte seu guru, seu livro sagrado ou, mesmo, sua imaginação (já que os fenômenos religiosos habitam esta esfera do pensamento). Afinal, religião, assim como seus elementos, no caso "as qualidades da Divindade", é uma questão de foro íntimo. Religião, cada um tem a sua.
Na filosofia também, afinal, uma terra de ninguém que levou certo pensador a notar que não há absurdo sobre a face da terra que já não tenha sido defendido por algum filósofo.
Agora, quando a coisa começa a se aproximar de instâncias práticas, como a moral e a psicologia, penso que devemos buscar critérios mais objetivos. Principalmente nesta última, onde seria ridículo exigirmos do pesquisador de um fenômeno qualquer na psicologia que consultasse as determinações do Aiatolá Kamenei, do Pastor Malafaia ou do nobre Papa antes de concluir pela sua hipótese (não digo por "uma verdade", porque não acredito que a ciência busque "a verdade"; acredito mais que ela busque o "conhecimento").
Poderíamos tentar uma defesa de Kardec (já que somos movidos pelo desejo religioso de que ele, como porta-voz dos espíritos superiores, como encarregado da terceira revelação de Deus aos homens, esteja sempre certo) dizendo que tal critério de verdade deve ser estudado à luz de sua concepção das "qualidades da Divindade", colocadas no início do LE e, à altura de qualquer Spinoza. Mas, sabemos que tais concepções, por mais nobres que o sejam, estão longe de serem universais. O que nos levaria à necessidade de, primeiro, convencer os cientistas de que existe um Deus e suas qualidades são aquelas relacionadas no LE, para que, só então, pudéssemos considerar válido o resultado de suas pesquisas na área da psicologia. Ora, não é bem mais fácil deixarmos tal critério para os assuntos religiosos -- ou, quando muito, para os filosóficos --, e voltarmos aos protocolos de pesquisa, teste, elaboração de hipóteses, verificação, refutação, etc., ainda não abandonados pela ciência?
Vale lembrar aqui de uma anedota histórica. Dizem que quando Laplace demonstrou ao Napoleão sua teoria sobre a formação da Terra e do Sistema Solar, o Imperador, impressionado, perguntou: "E Deus, onde entra aí nessa história?" Ao que Laplace respondeu: "Majestade, não precisei dessa hipótese". Portanto, Deus, suas qualidades, sua infinita bondade, seus atributos, etc., é uma hipótese desnecessária à ciência. Só é necessária aos pobres cientistas que vivem em Estados teocráticos. Foi necessária na Idade Média da Europa; é necessária no Oriente Médio; está sendo cada vez mais necessária no Brasil Evangélico; e, se tornará necessária quando o espiritismo kardecista tornar-se hegemônico, pois, ao menos na moral e na psicologia, "só será verdadeiro o que não se afaste, nem um iota, das qualidades essenciais da Divindade".
(A propósito, tais critérios de verdade cogitados por Kardec constam das duas versões da sua Gênese: a "Gênese Restaurada" e a "Gênese Reformada")