quinta-feira, 24 de outubro de 2019

SÍNDROME DA TRAIÇÃO


O que torna uma ideia progressista é a capacidade crítica daqueles que a seguem ou a estudam.  Quando a crítica é calada, contida, censurada ou, simplesmente mal vista, qualquer ideia perde seu caráter progressista.  Para que uma ideia seja disseminada, levada ao maior número de pessoas e se candidate a influenciar de algum modo o pensamento humano, ela precisa ser organizada em um movimento.  Esse movimento a transporta entre as mentes para que ela seja conhecida, debatida e exerça sua influência.  Para ser organizada a ponto de poder ser transportada, ela precisa ser definida, fixada, estabelecida em seus mínimos detalhes, para que se mantenha dentro de uma certa ortodoxia, pureza ou unidade de pensamento.  Aí está o paradoxo: a ideia, quando organizada em movimento, torna-se o cadáver da ideia;  ela necessita de um esquife para o transporte.  Muitas ideias surgem como produto da razão, da ciência, da dialética, da necessidade.  E, por esta gênese mesma, nascem com certa aversão à crença, à tradição, ao dogmatismo.  Porém, no afã de organizar-se e manter-se para a disseminação, elas acabam reproduzindo as estruturas que condenam.  Na prática e, pelo comportamento do seus adeptos, elas se tornam crenças dogmáticas.  O que antes era ciência ou filosofia, torna-se religião.  Qualquer crítica, qualquer revisão de princípios, argumentos ou justificativas, torna-se um perigo para o conjunto da crença, geralmente monolítico e autônomo.  E, para proteger a ideia, agora transformada em crença, para evitar a crítica de seus princípios, suas conclusões, seus valores (processo doloroso para o crente), o adepto engendra um bode-expiatório:  a traição.  A ideia, com pretensões científicas ou filosóficas em sua origem, não se tornou dogmática devido aos erros intrínsecos.  Afinal, para ser mantida incólume, íntegra, ela não pode conter erros intrínsecos. Seu fundador, de  forma explícita ou disfarçadamente erigido à condição de um revelador da verdade, não pode ter errado e, assim, deve ser cultuado.  Ela tornou-se dogmática, ou seja, o que se pretendia produto da razão tornou-se uma nova seita religiosa, devido aos traidores, aos que a desviaram de seus objetivos originais.  Assim, o processo torna-se menos doloroso, porque menos racional e mais emotivo, visceral.  Não se aprofunda a crítica à ideia:  fica-se na superfície remoendo fatos históricos de seu processo de disseminação, procurando e enumerando culpados pelos desvios doutrinários, cassando bruxas.  A ideia permanece no esquife;  a luta se desenvolve na sala do velório, sem que ninguém note, ou admita,  que estão numas exéquias.
A busca  de culpados externos -- e, não a análise impiedosa do próprio conteúdo da ideia --  para a compreensão da contradição entre intenção e prática, é a fuga da crítica, é a negação do progresso ou do seu progressismo original.