quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O ESPIRITISMO É CIENTÍFICO?

Alguns argumentos que põem em dúvida o caráter científico do espiritismo são dignos de atenção e provocam um bom debate. Outros, porém, são de uma puerilidade comovente.
Outro dia li no orkut alguém argumentando que o espiritismo não é científico porque "não se fazem pesquisas nos centros espíritas". Ora, dentro de qualquer ciência existem os centros de pesquisas, e os centros de aplicação prática dos conhecimentos acumulados. E, entre os centros de aplicação prática existem aqueles mais abertos às novidades que vêm dos centros de pesquisas, e aqueles que são mais refratários a novidades e mudanças. Nas capitais ou no interior temos inúmeros consultórios de dentistas, médicos, veterinários, advogados, psicólogos, assim como, inúmeros pedagogos, professores de educação física, de língua portuguesa, literatura e outros, todos eles, aplicando conhecimentos acumulados ao longo de décadas ou séculos, poucos realizando pesquisas, mas, todos, atualizando-se constantemente por publicações que relatam os resultados das pesquisas realizadas em universidades, institutos, fundações, laboratórios, enfim, centros que se dedicam à pesquisa. Os centros espíritas não têm compromisso com a pesquisa porque são centros de aplicação de conhecimentos. Têm, sim, o compromisso de se manterem atualizados com as pesquisas e questionamentos gerados em centros outros, como, por exemplo, a SBPE de Curitiba, o CPDOC de São Paulo, aquele outro herdado do Engenheiro Hernani, e mais uma porção existentes do Brasil e no mundo.
Outro fator a se considerar é a necessária adaptação da metodologia de ciência para ciência e de prática para prática. Não se pode pretender estudar um poema, uma pulsão ou uma virose, com o mesmo método que se estuda um combustível, o deslocamento de um objeto no vácuo ou um terremoto.
Temos que levar em conta também, em nossa analogia, os diferentes objetivos das atividades científicas. O espiritismo não pretende formar profissionais; sua prática não se dirige a um mercado. Ele é uma causa; gera uma atividade voluntária e não lucrativa. Daí, suas imbricações com a filosofia e a religião serem mais fortes e presentes que em outras atividades humanas.
E, se o argumentador pretender que o espiritismo não pode ter um aspecto científico por não ser ou não gerar uma atividade profissional, lembramos a ele que a profissionalização não é privilégio da ciência. Se admitimos a existência de religiosos profissionais, por que não admitirmos a existência de cientistas não profissionais?

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

DE ESDE's, PBDE's E COEM's

Quando falamos em sistematização do estudo do Espiritismo no Brasil, não podemos esquecer o trabalho de dois militantes na década de 50: um, na área da mediunidade, o Edgard Armond, com sua Escola de Médiuns; outro, na área de mocidades, o incansável José Jorge. Não estou pretendendo entrar no mérito dos cursos, suas virtudes ou defeitos. Apenas ressalto seu pioneirismo e sua influência no surgimento de outros cursos. Durante grande parte da nossa história houve rejeição ao estudo sistematizado por parte tanto dos organismos oficiais, as federações, como de alguns jornalistas espíritas. Esses últimos, não obstante, defendiam a organização de escolas e faculdades de espiritismo; mas não acolhiam com simpatia a mesma coisa nos centros. Tal rejeição durou até boa parte da década de 70.
A leitura pura e simples, comentada ou não, das obras de Kardec, que se fazia e ainda se faz nos centros, é uma atividade interessante. Mas, ao lado disso, é muito útil que se tenha programas de estudos sistematizados que facilitem o aprendizado em grupos e a saudável troca de compreensões e percepções.
Na década de 60 um grupo de jovens espíritas de Ponta Grossa-PR migrou para a capital do Estado, Curitiba, em busca de formação acadêmica, integrando-se no Centro Espírita Luz Eterna. Sob o risco de pecar pelo esquecimento de algum nome, eu citaria Alexandre Sech, Célio Costa, Telmo Wambier e os irmãos Neuton e Ney Albach. Em Curitiba, juntou-se ao grupo Maderli Sech, Maria Tereza Albach e várias outras pessoas, formando um grupo que daria o passo mais amplo em relação à sistematização do estudo do espiritismo. De início, eles introduziram, tanto no Centro como no movimento estadual, a prática de juntar os assuntos espíritas por temas, gerando programas de palestras semanais. Posteriormente, evoluíram para a criação do Centro de Orientação e Educação Mediúnica - COEM, método seguro e eficaz para a saudável iniciação à mediunidade, tanto no aspecto teórico como, principalmente, na prática. O COEM foi lançado em 1970.
Mais tarde, observando que o COEM era, na verdade uma especialização e, sentindo a necessidade de sistematizar o estudo da filosofia espírita com mais ampla abrangência, esse mesmo grupo lançou, em 1981, o PBDE - Programa Básico de Doutrina Espírita. Influenciou na conscientização dessa necessidade o lançamento pelo pessoal de Londrina-PR do excelente COED - Centro de Orientação e Estudo Doutrinário.
Essas iniciativas, somadas aos esforços de sistematização do estudo no Rio Grande do Sul, acabaram por fertilizar a Federação Espírita Brasileira que lançou, com sucesso, seu ESDE - Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

DE KARDECISMOS, PSIQUISMOS E RELIGIÕES

Cesar de Vesme era o diretor e editor da "Revue des Études Psychiques - Publication mensuelle consacrée aux recherches expérimentales e critiques sur les phénomènes de télépathie, télésthesie, prémonition, médiumnité, etc". ("Revista de Estudos Psíquicos - Publicação mensal consagrada às pesquisas experimentais e críticas sobre os fenômenos de telepatia, telestesia, premonição, mediunidade, etc.")
Entre vários outros livros escreveu "Visions grandioses de croix, d'armées et de combats dans les airs" ("Visões grandiosas de cruz, de exércitos e de combates nos ares"). A Editora União Graphica publicou no Brasil, em 1936, com o título "Visões grandiosas na terra e no ar". Em 1976, a Editora Eco não resistiu ao impulso de "aplicar um conto" e tornou a publicar com o título "Visões espíritas na terra e no ar" (que apelação!). C. de Vesme não usaria esse termo.
Escrevendo em sua revista, no distante ano de 1901, sobre a vã tentativa de Harrison D. Barrett de unir os espíritas americanos (Unite or perish! escrevia este), de Vesme assim se expressava: "A verdade é que o Modern Spiritualism americano, tornado uma religião mais ou menos igual a tantas outras seitas de iluminados: aos shakers, aos cientistas cristãos, aos teosofistas, etc., devia necessariamente ir ao encontro da mesma decadência que o nosso espiritismo kardecista; suas associações deveriam sofrer a mesma sorte que as nossas. É o espiritismo que cede seu lugar ao psiquismo, a revelação que cede seu lugar à experimentação, a religião (no velho sentido da palavra) que se transforma em ciência. O espiritualismo moderno, se está destinado a triunfar, não verá sua própria marcha retardada pela morte do Modern Spiritualism americano - ao contrário. Putrescat ut resurgat!"
Na mesma edição, quando faz o necrológico do Leymarie, colocando-o como sucessor de Kardec, diz: "Ele se encontra, assim, à testa do kardecismo, que era então, nas nações latinas, a única doutrina espírita conhecida". E, mais adiante, diz que graças a ele "a Revue Spirite vive ainda um longo período de fortuna e popularidade, sobretudo no estrangeiro".
Como se vê, já naquele tempo, o kardecismo fenecia entre franceses e ingleses -- onde não era a "única doutrina espírita" (sic) -- enquanto se disseminava entre os latinos.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

MAIS ALGUMA COISA SOBRE IDENTIDADE

"O Espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, ele compreende todas as conseqüências morais que decorrem dessas relações. Pode-se defini-lo assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, da origem e da destinação dos Espíritos, e das suas relações com o mundo corporal." (Kardec, "O que é o Espiritismo").

Existe diferença entre ciência de observação e doutrina filosófica.
A nomenclatura, uma prática que, seja de forma natural, cultural ou intencional, procura dar às coisas o nome adequado visando sua compreensão pelo universo dos falantes, costuma associar à primeira o sufixo -logia, e à segunda o sufixo -ismo. Kardec, usando sua auto-atribuição de nominar e definir o que seja espiritismo, diz que ele é, ao mesmo tempo, as duas coisas (ciência e doutrina), para, logo a seguir, dizer que é apenas uma das coisas (ciência). Ao nominá-lo, porém, deixou clara sua preferência por doutrina, associando-o ao sufixo -ismo. Pelo menos, não me lembro, no momento, de nenhuma ciência terminada em -ismo. Já doutrina, escola, teoria, movimento, ação, prática ou condição, sim. Mas eu penso que a acepção mais nobre e ampla que pode atingir o sufixo -ismo seja a de mundividência. Taí: quando alguém perguntar "o que é o espiritismo", ao invés de ficarmos tartamudeando se é ciência ou religião, digamos logo que é uma visão e vivência do mundo que enfatiza o espírito. E, não adianta recaírmos no argumento de autoridade escavando citações na kardequiana. Primeiro, porque ele não se decidiu em definitivo, pendendo ora prá um lado ora prá outro, deixando textos que alimentam as duas posições. Segundo, porque ao lermos Kardec não podemos nos desnudar do conhecimento e influência que temos de Freud, Marx, Einsten, Popper, Adorno e tantos outros, assim como, esquecer toda a brutalidade e violência de que fomos capazes no século XX. Caso contrário, é melhor invocar logo o Wells, entrar em sua máquina do tempo, e ir viver feliz no século XIX.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

CIÊNCIA OU RELIGIÃO? (II)

O Espiritismo é um conhecimento novo; não se enquadra nas classificações estanques de ciência, filosofia ou religião. Daí que nunca chegarão a um acordo discutindo sua identidade presos a essas classificações. Ele quebra paradigmas; e cria novos. A compreensão de sua identidade deve se dar por conjecturas novas, em novas bases, a serem, talvez, ainda construídas.
A ciência é uma criação humana, resultante das conjecturas que constroem o instrumental metodológico (feita pelos que se dizem "filósofos") e do trabalho dos que usam tais instrumentais (e que se dizem "cientistas").
Ela é tão humana e falível, que estudos científicos, produzidos dentro de universidades, com supervisores e bancas, e publicados em revistas científicas do nível da Nature, chegam a resultados conflitantes.
Kardec insistia em que o Espiritismo fosse ciência porque era um pensador típico do século XIX; época de ingenuidade, em que se endeusava a ciência, pois ela não havia ainda passado por uma crítica mais amadurecida.
Hoje, podemos afirmar que o Espiritismo não é, não deve ser e não precisa ser ciência. Pode ser, sim, metaciência: algo para além da ciência e que tem métodos e conhecimentos suficientes para fazer a mais contundente crítica que a ciência jamais admitiu.
Daí certos embates irreconciliáveis que assistimos entre céticos (que, porém, são "crentões" na ciência) contra espíritas.
Não passa, muitas vezes, da defesa de um mercado ameçado: o "científico"!

sábado, 25 de julho de 2009

O MITO DAS TRADUÇÕES DO HERCULANO (II)

O comentário que fiz há dias sobre as traduções do Heculano, exige uma correção.
A tradução de O Céu e o Inferno ali referida é, na verdade, atribuída a ele e ao João Teixeira de Paula. Como não há divisão de responsabilidades explicitada, atribuí a ambos a evidente suspeita de "colação" com a tradução do Guillon Ribeiro. Porém, informaram-me (se bem que sem declinação clara da fonte) que o Herculano traduziu apenas até o caso Jean Reynaud, no Capítulo II, ficando o restante a cargo do João Teixeira de Paula. Só que, o João, sei lá, talvez, na pressa da impressão, outra tradução prontinha no mercado... sei lá...

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O DISCURSO DE MIGUEL VIVES

Foi solicitado ao autor de O Tesouro dos Espíritas que discorresse, no já referido Congresso Internacional Espírita, em Barcelona, 1888, sobre o tema As tendências do Espiritismo em sua parte moral. Aí vai a tradução livre do seu discurso. Um testemunho afetivo e sincero desse expoente do Espiritismo. Alguns poderão achá-lo excessivamente sentimental e, por certo, criticarão a postura de submissão ao establishment. Mas, vale lembrar que era exatamente esse o espírito opressor da época em muitos lugares da Europa e, principalmente na Espanha, onde os cidadãos eram súditos, e não havia direitos básicos como acesso à terra e a trabalho livre (meu avô costumava dizer que migrou para o Brasil por causa disso). Para aproximar um pouco mais o discurso de nossa época, servi-me da faculdade traidora de todo tradutor e passei a forma de tratamento para a terceira pessoa, mais usual entre nós.


"Senhores Delegados,

Antes de tudo, permitam-me manifestar minha gratidão a Deus, que criou o espaço infinito e o povoou de sóis, de mundos, de satélites, de cometas e de maravilhas sem fim; onde a ordem, a harmonia e a previsão são a expressão viva da onipotência do Criador e a admiração de todos os seres pensantes que povoam o universo.
Permitam-me manifestar meu reconhecimento a ele pelo Eu que sinto em mim mesmo, que tenho certeza de ver progredir eternamente, que sempre encontrará novas manhãs, novos dias, novas famílias, novos espaços, novos progressos, novas virtudes e que, no caminho do infinito, aperfeiçoará todas as faculdades, até atingir ao mais alto degrau da perfeição.
Permitam-me admirar ainda o poder divino que vejo se manifestar nos atos que realizamos. Ah! Senhores, há já longos anos, quando proclamaram a Revelação, que pronunciaram a palavra Espiritismo, o mundo nos recebeu com uma gargalhada; e vendo que não podia nos aniquilar nem nos impedir de pronunciar essa palavra, nos cobria de ridículo e de desprezo, e lançava contra nós a perseguição moral que nos separa da sociedade e da família; chegaram a nos tratar como loucos.
Mas a opinião pública (tão poderosa quando se trata de romper cadeias e estabelecer os princípios da liberdade), quando se opõe à lei do progresso e à palavra de Deus, de início se agita, logo se cala, depois se deixa convencer; e o que era em princípio uma grande loucura, se torna enfim uma suprema verdade que vem regenerar todo o mundo.
Uma vez pago meu tributo de reconhecimento a Deus, a meu Pai, a meu Tudo, eu vou me acertar com meus irmãos.
Vejo em torno de nós, Senhores Delegados, vários espíritas notáveis.
Vejo os filhos da França representados na pessoa ilustre do Senhor Leymarie. Eu o saúdo, assim como todos os seus correligionários, filhos da pátria de Victor Hugo, de Thiers e de Gambetta; os filhos dessa pátria que, após sofrimentos e evoluções, levanta sua liberdade sobre o pedestal das liberdades européias; ela é hoje a esperança de todos os oprimidos do velho mundo.
Eu saúdo os filhos da pátria de Bellini. Os filhos dessa pátria cujas artes e harmonia têm preenchido o mundo; que tem elevado os sentimentos de todos graças às suas belas melodias. Os filhos que sofreram durante tantos séculos sob o jugo teocrático; que viram guilhotinar sua liberdade com a sentença de Tonetti, mas que mais tarde realizaram sua unidade, e como símbolo da liberdade de consciência elevaram a estátua de Giordano Bruno em face mesmo do Capitólio.
Eu saúdo também, e admiro ainda mais, os filhos das terras de Além-Mar, insignes apóstolos da abnegação e do sacrifício. Esses homens que, ao apelo dos espíritas espanhóis, se empenharam de seguir, sem medo dos perigos da viagem, o caminho traçado por Colombo no Oceano. Eu lhes asseguro que o sacrifício ficará gravado na memória de Deus, e lhes será uma grande consolação na hora suprema de sua transformação.
Tendo feito meu dever, vou agora cumprir a obrigação que me impus, ainda que superior às minhas forças, e que consiste em desenvolver diante dos senhores: As tendências do Espiritismo em sua parte moral.
Ah! Senhores, se eu pudesse compreender e revelar-lhes as impressões e alegrias que se apoderam do espírito desde seu arrependimento até à crença numa vida melhor; se eu pudesse fazer-lhes compreender a esperança e o gozo que sente o espírito quando, convencido de sua imortalidade, penetra nas ciências psíquicas e vê desenrolar-se diante de si essa sucessão de mundos e de maravilhas que o espírito deverá encontrar durante sua ascensão progressiva. Se eu me cresse digno, eu pediria aos espíritos puros do espaço que clareassem minha inteligência; se me cresse digno, eu pediria ao espírito que sofreu no Calvário, que iluminasse por um instante minha razão, como iluminou os mártires do cristianismo. Mas, não o ouso, porque sou indigno de tal honra. Tenho apenas confiança na lei de amor, que reina no espaço, e na boa-vontade dos senhores, que não me recusarão, pois sabem que em mim não fala nem o talento, nem a sabedoria, mas a convicção e o amor.
Quais são as tendências do Espiritismo? É de levantar aquele que está abatido; de fazer crer aquele que duvida; de dar as mais grandes consolações e as mais supremas esperanças; ele tende a transformar os vícios em virtudes, o egoísmo em caridade, o desespero em tranquilidade; ele tende a obter para a humanidade a mais grande tolerância, por fundir todas as escolas e todas a religiões nos grandes princípios da existência de Deus, da imortalidade da alma, do progresso infinito e da reencarnação.
A existência de Deus e a imortalidade da alma têm sido os princípios fundamentais de todas as religiões. Sobre esses dois pontos elas têm estabelecido seus dogmas, sua teologia e seu poder. Mas, é triste dizê-lo, após tantos séculos de dominação teocrática, a humanidade está mais cética do que nunca. E sabem por quê? Porque as religiões têm sempre imposto e jamais demonstrado; daí porque a fé cega está perdida, não restando senão a fé especulativa. Ora, o Espiritismo não vem impor esses dois princípios, mas sim, demonstrá-los.
Sabem como ele prova a existência de Deus e a imortalidade da alma? É por meio da comunicação com os que já viveram sobre a terra. Mas, infelizmente, Senhores, essa comunicação que nos tem dado tantas consolações, que nos tem revelado tantas verdades, que nos tem explicado tudo o que até então era mistério, que tem sido a testemunha ocular de nossos pais, de nossos filhos, de todos aqueles que desapareceram da face do globo, essa comunicação tem sido recebida no XIXo. Século como foram acolhidas em sua época os cálculos de Colombo, os trabalhos de Gutemberg, as descobertas de Galileu e as deduções de Newton.
E por quê? Porque a comunicação nos tem dito que Sócrates, Platão, Aristóteles e Plutarco vivem ainda. Porque ela nos diz que todas as raças que lutaram afastadas pela barbárie e pela cobiça foram sujeitadas à lei da perfeição e do progresso infinito. Por que ela nos diz que todos os heróis, todos os mártires, todos os grandes, assim como todos os criminosos, estão vivos; que João Huss, Savonarole, Geronimo de Praga, ressuscitaram das cinzas das fogueiras do Santo Ofício; que Guilherme Tell, Riego, Padilha e todos os mártires da liberdade existem ainda. Assim como Franklin, Copérnico e todos os mártires da ciência; assim como Joana D'Arc, Washington, Lincoln, Masini, Gambetta, Victor Hugo, Garibaldi, Prim e todos aqueles que existiram durante o curso das gerações sucessivas, que viveram sobre a terra e sobre todos os mundos.
A humanidade pensa que os que viveram antes de nós não se comunicam mais. Ela crê que as comunicações são uma ilusão de nossa imaginação exaltada, um resultado do fanatismo da nossa escola, ainda que se contem milhões de espíritas. Ah! Senhores, é preciso confessar que, ou bem a tolice na qual a humanidade crê é uma sublime verdade, ou uma grande parte da humanidade é realmente louca.
Mas a mim me parece que a maneira de raciocinar dos espíritas não é nem loucura, nem fanatismo, nem ilusão; parece-me que a loucura, o fanatismo ou a ilusão, não poderiam trazer uma nova moral, uma nova revelação, uma nova ciência. Por isso eu afirmo que a comunicação dos espíritos que vivem no espaço conosco que vivemos sobre a terra é uma verdade demonstrada somente pelo Espiritismo e o afirmo diante de vós, professores, doutores ilustres e médicos distintos que me ouvem neste Congresso. Afirmo e estou seguro que nenhum dos senhores irão me desmentir; estou seguro que, com toda sua sabedoria, não negarão minhas afirmações. Como poderiam refutá-las? Que eram os senhores, que era eu mesmo, e que eram todos os que não esperam nada além da matéria? Que eram os senhores, antes de conhecer a comunicação? Um ajuntamento de materiais sujeitos ao acaso: ora se lançavam ao infinito, para tornar a cair daí a pouco no abismo sem poder explicar os acontecimentos nem definir as circunstâncias. Que seria o amor de suas esposas e de seus filhos? Que significariam todos os esforços, todos os sacrifícios, todos os trabalhos empreendidos por aqueles que nos têm precedido durante a vida? Que significaria a caridade praticada por São Vicente de Paula? As orações de Tereza d'Ávila? Que significariam as lágrimas vertidas na via dolorosa, e as sublimes palavras: "Pai, perdoa-os; não sabem o que fazem"? Que significariam os sacrifícios feitos pelas mulheres arrastadas através das ruas de Roma e pelos mártires imolados nos circos, sob as fogueiras e sob o machado do carrasco? Que significariam a inspiração de Demóstenes, de Cícero e do Apostolo Paulo? Que significariam a arte de Murilo, de Rafael, de Michelângelo; as melodias de Mercadente, Rossini e Donizetti; o gênio de Cervantes, Lamartine e Victor Hugo, se tudo devesse se perder, se tudo devesse desaparecer, se a mesma recompensa alcançasse o mártir e o criminoso, se tudo devesse ser a tragédia fatal cuja vítima seria a humanidade inteira?
Mas, já sabem, Senhores, que não há virtude sem recompensa, nem vício sem repressão. Sabem já que a imortalidade está demonstrada, e que a comunicação com os seres que nos precederam é um fato prático; sabem que a comunicação é altamente moralizadora, e que ela é o testemunho de todas as verdades da revelação espírita. Isto porque todos os sacrifícios, todos os heróis e todos os mártires obedecem a uma lei de progresso e de perfeição necessária ao desenvolvimento da humanidade. Eu me rejubilo de poder afirmar diante dos sábios reunidos nesta Assembléia, diante dos professores, dos doutores e dos médicos -- porque não se pode dizer que o Espiritismo recruta seus adeptos entre os ignorantes facilmente enganados, se vemos, em nosso meio, espíritos que agem com todo conhecimento de causa , e que falam em nome da ciência e da revelação --, e eu asseguro que, no XIXo. século, se um grande filósofo se tivesse levantado para reformar o mundo e não tivesse provado sua filosofia por fatos extraordinários, ele seria morto antes de nascer.
Eu lhes disse, senhores, que gostaria de demonstrar as tendências do Espiritismo em sua parte moral; permitam que me ocupe um pouco de mim mesmo e lhes conte dois episódios da minha vida, terríveis golpes, que se passaram muito claramente.
Há 22 anos eu vivia em plena lua de mel, tudo sorria à minha volta. A mulher que eu havia escolhido como companheira da minha vida não era para mim uma mulher, mas um anjo. A vida se desenrolava feliz e, jamais eu pensaria que essa felicidade pudesse se interromper. Mas, infelizmente, a mulher que eu tanto amava foi acometida de uma doença terrível; toda a minha alegria se evapora num momento; pois jamais eu acreditaria que pudesse perdê-la para sempre. A doença tomou proporções alarmantes; apelei à ciência em socorro, apelei a tudo que podia para salvá-la, mas tudo foi inútil. Seu olhar tão expressivo, tornou-se fraco, indeciso; seus lábios róseos se descoloriram; seu corpo tão flexível, torna-se rígido. O coração cessa de bater e todas as minhas esperanças, toda a minha alegria, todo o meu amor se transforma, pois com a morte do corpo, não resta senão um cadáver.
Ah! Senhores, como foi grande meu desespero. Maldisse tudo que me cercava, e para que ninguém visse meu desgosto, fugi para o campo, chorando amargamente. Tudo estava morto para mim. Enquanto eu chorava e me desesperava, os pássaros enchiam o ar com seus cantos. Virei-me para eles e disse: "Por que cantam? Não sabem que perdi toda minha esperança e todo meu amor? Não sabem que meu coração é um deserto, e vivo como um moribundo? Seus cantos são uma zombaria. E você, rouxinol, por que me faz ouvir seus sons modulados? Não sabe que o ninho mesmo que você acaricia é uma ficção? E vocês, vales, que parecem túmulos da humanidade; e você, Sol, que me abrasa, que ilumina tal drama, por que não acaba logo com esse dia cheio de males?" Uma horrível tempestade se desencadeia então no espaço; vendo os raios lívidos e ouvindo o ressoar dos trovões, me parecia que aquela trovoada era justa, que era bom que chegasse.
Permaneci longo tempo presa das mais cruéis recordações, dos mais tristes pressentimentos, que se esvaneceram após minha conversão ao Espiritismo; conversão que não vos detalharei, pois sabem o que se sente, o que se passa. Direi somente que há seis anos eu tinha, de minha segunda esposa, um filho encantador, com nove anos de idade (para os pais, as crianças são todas gentis). Ele me acariciava seguidamente e me abraçava com uma ternura toda particular, dizendo: "Pai, quando você for velho, eu lhe darei de comer e o levarei a passear, como faz hoje comigo". Deixo-os a pensar no que sentia minha alma. Mas, infelizmente, uma terrível doença teimava em meu filho; seu corpo vivo e gracioso enfraquecia; seu olhar antes tão pleno de viva expressão, tornava-se lânguido, indeciso. Socorri-me, então, nas verdades espíritas; lembrei que meu filho não morria e, sim, renascia; e, enquanto ele dava o último suspiro, eu via a tranquilidade da sua nova vida, seu progresso novo. Disse, então, aos que me cercavam: "no relógio terrestre soa a última hora da vida de um corpo, mas o relógio do espaço marca a primeira da existência de um espírito. Meu filho não morre, ele se transforma; e brilhará logo mais no mundo dos espíritos: Respeitemos a vontade de Deus".
Logo, uma angústia se apodera de mim: que posição ocupará meu filho no mundo espiritual? Irá ele sofrer por alguma falta de suas existências passadas? Não, eu dizia a mim mesmo: "seu filho era bom; ele amava muito os pobres e era sempre o primeiro a pedir por eles". Então, pedi a Deus que me permitisse saber o estado do meu filho; pedi ao meu filho uma prova de sua posição. Mas eu desejava uma prova extraordinária, definitiva. Ela não se fez esperar. Numa das reuniões que vamos todo domingo, meu filho se manifestou, e o fez de uma maneira muito particular, dando tantas provas que a família o reconheceu bem antes que ele desse seu nome. Aquele espírito me chamou "pai", deu-me provas de um grande e puro amor, descobriu-me as belezas da criação e da natureza de uma maneira que eu jamais sentira. Sua posição estava tranquila, elevada, plena de paz e alegria. É impossível transmitir ao senhores a imensa alegria que se apoderou de mim. E a todas as mães que perderam seus filhos, eu diria: não chorem mais, porque seus filhos não estão mortos; eles vivem no infinito. A todos os filhos que perderam seus pais, eu diria: não chorem mais, porque seus pais vivem a vida eterna. Minha casa tornara-se pequena para conter minha alegria; eu precisava render graças a Deus no meio da imensidão. Dirigi-me então para o campo. Elevava minha prece ao grande Criador, e manifestava minha gratidão ao Pai de Todo o Universo. Enquanto meu coração reconhecido se elevava a Deus, os pássaros cantavam. Ouvindo-os, eu me lembrava de outra ocasião, quando eu os havia severamente repreendido. E lhes disse: "cantem, queridos pássaros, cantem! seus acordes são uma eterna harmonia que se une às belezas da criação; cante, ó rouxinol, pois o ninho que acaricia já não é uma ficção, mas uma manifestação da vida infinita em suas múltiplas transformações; e vocês, vales, que me pareciam de outra feita os futuros túmulos da humanidade, hoje os vejo como lugar onde se desenvolve a vida de uma multidão de seres, o lugar onde eles crescem, se agitam e se desenvolvem; e você, Sol, que ilumina um sistema de mundos, você é a testemunha da onipotência divina, e eu o bendigo". Enquanto eu assim me entregava à alegria da contemplação da criação, eu vi ao longe um arco-íris que começava a empalidecer: era o arco-íris de uma terrível tempestade!
Crêem, Senhores, que essa comunicação dos pais com seus filhos, e dos filhos com seus pais, não se produzirá em todas as classes sociais? Crêem que a humanidade repelirá sempre as investigações dessas comunicações espirituais que trazem tantas consolações?
Não, Senhores. A comunicação chegará aos grandes da terra, e lhes dirá: é verdade que os senhores têm o poder; mas, infelizmente, desgraçados serão, se em lugar de serem protetores, transformarem-se em carrascos; desgraçados serão se fizerem correr o sangue! porque na hora suprema de sua transformação, encontrarão os que oprimiram; o sangue derramado os cercará, e não encontrarão no espaço lugar algum para esconderem seu horror e sua vergonha. Se, ao contrário, forem o que devem ser; se considerarem que acima de nós se encontra o Autor da lei; se amarem, protegerem e tratarem como devem seus súditos, serão grandes sobre a terra e no espaço, e na hora suprema de sua transformação seus subordinados aclamarão e darão a vocês conhecimento de sua satisfação e alegria.
A comunicação ensinará e provará à dama aristocrática que é preciso não somente adornar seu corpo, mas também seu espírito; lhe mostrará que o ser que não pensa senão em si mesmo é o mais pobre no reino de Deus.
A comunicação dirá aos ricos: é bem verdade que os senhores possuem o poder do ouro; mas, infelizes serão se não servirem aos semelhantes; infelizes serão se esquecerem os mandamentos sublimes: ame teu próximo! Infelizes serão se olharem somente para si mesmos; porque estarão presos às correntes que tiverem forjado! E quando chegar a hora da transformação, seu espírito não encontrará nenhuma voz amiga, nenhuma palavra de consolação, nenhuma esperança, e ele ficará perdido no espaço infinito, cercado das mais espessas trevas. Mas, se tiverem em vista o bem geral, se lembrarem da solidariedade e da proteção mútua, se aliviarem e consolarem seus semelhantes, se suas riquezas visarem um fim útil ao progresso humano, então o reconhecimento será seu patrimônio no mundo futuro; seu espírito será aclamado e cercado de espíritos amigos, e compreenderão o quanto estiveram trabalhando para si mesmos, enquanto praticando sobre a terra a justiça e o amor!
A comunicação se manifestará aos oprimidos e aos infelizes; lhes fará grandes promessas; lhes abrirá o caminho do esquecimento e da esperança, e lhes dirá: Bem aventurados os que sofrem e têm fome e sede de justiça; lhes mostrará as liberdades que esperam no reino dos céus os que foram oprimidos sobre a terra, e as angústias reservadas aos opressores; a esperança e a resignação penetrarão, então, em seus corações, e eles sofrerão com calma os tormentos da vida.
Isto que lhes digo, Senhores é um fato prático, e para o provar acrescentarei algo ao nosso Congresso: tenho a honra de representar uma sociedades espírita formada por 32 condenados, que sofrem e purgam suas condenações.
(O orador pega uma carta e a lê).

"Senhor D. Miguel Vives, muito caro irmão.
"Nós agradecemos suas exortações e nos sentimos imensamente felizes ao sabermos que um Congresso internacional espírita se vai celebrar; lamentamos vivamente não podermos tomar parte; tal coisa nos é impossível; mas nós lhe suplicamos de se digne a nos representar e proclamar em pleno congresso que 32 indivíduos, outrora criminosos, hoje se arrependem e perdoam seus inimigos, e sonham retornar à vida livre para demonstrar a mudança que neles produziu o Espiritismo.
"Não pensamos senão em nossa própria reforma moral, e na da humanidade.
"Trinta e dois condenados os saúdam, e desejam a proteção de Deus."
PRISÃO DE TARRAGONA.

Isto foi escrito por 32 criminosos que haviam perdido qualquer consciência; 32 homens que odiavam a sociedade, porque eles se consideravam como estando completamente sós, abandonados de todos, e crendo haver perdido as últimas considerações sociais. Pobres irmãos! Eles tiveram, no entanto, uma mãe que os embalara, que os amara e cobrira de beijos no envolvimento do amor maternal... Depois de lutarem na vida durante longos anos, eles chegaram a esse terrível estado, onde sofrem ao mesmo tempo a punição da justiça e o desprezo de todos.
A comunicação com os espíritos manifestou-se a eles; ela lhes fez ouvir uma voz amorosa que veio reavivar-lhes as esperanças perdidas; eles procuraram os livros e brochuras espíritas, estudaram, fizeram pesquisas, e, enfim, se convenceram de que existe um meio com a ajuda do qual as portas do progresso são abertas a todos; com a ajuda do qual o criminoso pode tornar-se um ser perfeito, graças ao arrependimento e à prática do bem, que prova que o nobre operário é eterno, como a vida e os espaços são eternos; eles creram, enfim, que a lei que dirige e domina o universo é o amor.
O Espiritismo demonstrou-lhes tais fatos de uma maneira tão clara que esses homens se prostraram ante a grandeza de Deus; ante a magnitude daquilo que os espera; diante do progresso e da vida eterna prometida pelo Espiritismo, demonstrada pela comunicação dos espíritos mortos e dos espíritos vivos. E esses homens que tinham tudo perdido, se encontraram no meio da grandeza onde o Pai espera sempre o filho pródigo; eles encontraram uma grande família que ama todos os seus irmãos, que se rege pela lei do amor. Esses homens que odiavam tudo, perdoam agora, amam e esperam, suportam com resignação sua prisão, e aguardam somente o momento de poderem provar que, de criminosos, tornaram-se apóstolos da verdade, da moral e do amor.
Creio ter mostrado aos Senhores as tendências do Espiritismo em sua parte moral; mas para dar ainda mais um prova, acrescentarei: quando chegar para mim o derradeiro momento da vida material, não direi um adeus eterno; abraçarei minha esposa e minha filha e lhes direi: até logo!
Não me resta mais do que felicitar os Senhores pelo maravilhoso resultado do seu trabalho, e acrescentar: se um dia meus irmãos da Itália me chamarem, eu irei à Itália; se forem os da França, irei à França; atravessarei mesmo os mares para atender a um chamado dos meus correligionários, e creio que os Senhores fariam o mesmo para dar uma prova que os espíritos têm por pátria o mundo inteiro, e por família a humanidade inteira.
Tenho dito.

( Miguel Vives, Presidente da Federação Espírita de Vallés, e vice-presidente da comissão organizadora do Congresso).

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A CRÍTICA DA REVUE AO MEB

O Espiritismo não "surgiu religioso" no Brasil. Luiz Olympio Telles de Menezes até poderia ser relacionado entre os "espíritas científicos". Tanto é que, em termos de religião, continuou de bom grado católico como sempre fora. O Espiritismo tornou-se "religioso" no Rio de Janeiro, bem pertinho do final do século XIX, sob a liderança do Bezerra de Menezes e, em consequencia de uma certa "seleção natural", conforme eu disse na "postagem" anterior.
Então, por que a Revue disse o que disse em dezembro de 1869, quando recebeu O Echo d'Além Túmulo, do Olympio, lançado em setembro daquele ano?

"A introdução e a análise que o Sr. Luiz Oyimpio faz, da maneira pela qual os Espíritos nos revelaram a sua existência, parecem-nos bastante satisfatórias. Outras passagens, referindo-se especialmente à questão religiosa, dão-nos ocasião para algumas reflexões críticas. Para nós, o Espiritismo não deve tender para nenhuma forma religiosa determinada. Ele é e deve permanecer como uma filosofia tolerante e progressiva, abrindo seus braços a todos os deserdados, qualquer que seja a nacionalidade e a convicção a que pertençam. Não ignoramos que o caráter e a crença daqueles a quem se dirige "O Echo d'Além Túmulo" devem levar o Sr. Luiz Olympio a contornar certas suscetibilidades. Mas acreditamos, por experiência, que a melhor maneira de conciliar todos os interesses consiste em evitar as questões que cada um deve resolver em sua própria consciência, e empenhar-se em popularizar os grandes ensinamentos que encontram eco simpático em todos os corações chamados ao batismo da regeneração e ao progresso infinito."

Quanto deve, o Luiz Olympio, ter-se sentido injustiçado ante tal comentário. Pois, afinal, ele agira direitinho pela cartilha de Kardec. Este, se rejubilava em ter como membros de sua sociedade, espíritas de todas as confissões religiosas: católicos, protestantes, muçulmanos. E reiterava que o Espiritismo era o principal aliado das religiões, pois fortalecia a fé, dando explicações racionais ao que antes se cria por tradição.
O que os redatores da Revue, sucessores de Kardec, ignoravam, era o contexto histórico na Bahia. O Arcebispo da Bahia, D. Manuel Joaquim da Silveira, ante o progresso alcançado por Olympio e seus amigos na divulgação do espiritismo, lançara, em 16.6.1867, uma pastoral condenando veementemente o Espiritismo, porque, segundo ele, contrariava os dogmas católicos como a ressurreição e o destino definido dos mortos. Olympio contra-argumentava que o Espiritismo corrigia os dogmas católicos, e que a Igreja muito se beneficiaria se o incorporasse num lance de atualização e progresso. Isso tudo, claro, fudamentando-se na Biblia, afinal, a base sobre a qual se apoiava o Arcebispo. Ora, prá quem vê de fora, parece que o Olympio queria atrelar o Espiritismo nascente ao catolicismo. Daí, a alusão à "questão religiosa", que alguns apressadinhos tomam como uma crítica ao "religiosismo" , coisa ainda inexistente naquele momento.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

CIÊNCIA OU RELIGIÃO?

Os trabalhos acadêmicos que pretendem responder a essa questão sobre a identidade do Espiritismo, ao menos os produzidos no Brasil, são de um reducionismo lamentável: o espiritismo era científico na França e tornou-se religioso no Brasil. Pronto; é isso aí; dêem-me a nota do mestrado!
Ora... ora...
Não interpretaram o que leram de Kardec, e não leram nada sobre o espiritismo na Europa depois dele.
A verdade que ressalta de uma observação inteligente é que Kardec foi ambíguo.
Em sua convicção de que o Espiritismo aliaria religião e ciência, ele acabou justificando o surgimento dos dois segmentos: o espiritismo científico e o espiritismo religioso.
Basta ler sua obra toda, apreendendo o conjunto do seu pensamento. Não apenas selecionando o que interessa para a defesa de sua tese: seja tese acadêmica, ou seja tese nas lutas internas do movimento espírita. Leia-se tanto suas afirmações reiteradas de que o espiritismo é ciência, quanto suas concessões no Evangelho Segundo o Espiritismo; mas, principalmente, seu discurso publicado na Revue em dezembro de 1868.
E leia-se, também, na elaboração das teses, o que se produziu na Europa após Kardec e até o encerramento da fase européia do espiritismo. (O espiritismo morreu na Europa em 1934, após o último congresso em Barcelona e pouco antes da ancien europe diluir-se na luta contra o fascismo; apesar de que só foi sepultado na década de 70, quando André Dumas, herdeiro de todos os produtos kardecistas, mudou o nome da Revue Spirite para Renaitre 2000). Leia-se livros, pesquisas, teses e anais de congressos; hoje isto tudo está disponível na internet, quer seja para telechargement, quer seja em ofertas em sebos.
Essa leitura permitiria ao acadêmico conhecer os discursos piegas e as alusões a Roustaing nos Congressos; conhecer as tentativas de equacionamento da questão com a sugestão da religião laica; conhecer um Jean Meyer, mecenas e herdeiro da Revue, que manteve o movimento espírita na França por várias décadas, dando-lhe um direcionamento assistencialista e religioso. Conhecer, finalmente, a opinião do Conan Doyle em 1928 sobre o futuro religioso do espiritismo.
A morte do espiritismo científico e a sobrevivência do espiritismo religioso deveu-se, simplesmente, a uma lei de seleção natural (no caso, na epistemologia, porém equivalente àquela da biologia: é só fazer as necessárias analogias - assim, se não for verdade, ao menos rima, ou seja, se non è vero è piu trovato).
E qual foi a mudança no ambiente (ambiente intelectual, claro) que provocou o desaparecimento do espíritismo científico?
Emergiram, no oceano do conhecimento humano, as pesquisas do inconsciente, trazendo para o meio científico explicações muito mais convincentes para os fenômenos mediúnicos, do que as explicações espíritas. Ante a aceitação de uma nova teoria e prática albergada sob o nome de psicologia -- palavra até então utilizada para a designação de uma disciplina filosófica, e que passa a designar uma ciência --, o espiritismo foi perdendo todas as esperanças de ser aceito como ciência. Consequentemente, sua vertente científica extinguiu-se. Já a vertente religiosa, conseguindo não só aparar como revidar os golpes dados na área do conhecimento em que transitava (a religião), sobreviveu e multiplicou-se.
Hoje, o espiritismo apreendido e praticado como religião é claramente hegemônico em todo o mundo.
E as insistências de que ele é ciência só são toleradas quando partem de ingênuos; pois, quando partem de intelectuais, são ridicularizadas pelos cientistas uma vez que se lhes assemelha a um esforço equivalente à tentativa de se ressuscitar um fóssil.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

AS QUESTÕES CONGRESSUAIS

Nos anais dos congressos internacionais espíritas da fase européia, bem como nas edições da época, pode-se encontrar farto material para se compreender as tendências se formando no seio do movimento, muitas das quais não se resolveram até hoje. É nesse material que buscam subsídios para suas teses os acadêmicos que atualmente se debruçam sobre esse movimento social de difícil definição que é o espiritismo.
Nicole Edelman inicia seu artigo acadêmico (Spiritisme e Politique)com uma pergunta um tanto descabida: "Uma religião ou uma crença pode suscitar uma reflexão ou uma ação política?" Seria de estranhar se assim não fora, ou seja, que as idéias filosóficas ou as crenças religiosas não gerassem estímulos ou justificativas para ações políticas.
Lendo esses textos (anais, teses, etc.) observamos uma certa transformação (ou evolução) nos modos de ação político-social dos espíritas. De uma prática aparentemente voltada para o alheamento, o recolhimento e a atenção ao plano espiritual, Kardec retirou elementos para uma ação concreta no mundo: o auto-aprimoramento, a caridade, a luta pelos direitos civis das mulheres, a luta pelo fim da escravidão, e outros estímulos que encontramos nos seus escritos da Revista Espírita. Os que o sucederam de imediato, ampliaram essa ação. Leymarie, com mais algumas pessoas, criou a Liga de Ensino, que galvanizou toda a França e implantou inúmeras bibliotecas gerando o salutar hábito de leitura identificado até hoje naquela população. Jean Baptiste Godin criou o seu familiansterio, uma das mais concretas contribuições do socialismo utópico. Some-se a isto o engajamento no Caso Dreyfus e a defesa dos judeus, assim como a continuidade daquelas intervenções iniciadas por Kardec. Giovanni Hofman, presidente da União Kardecista da Itália, apresentou no Congresso de 1888 uma tese sugerindo a estimulando a maior atuação dos espíritas nas esferas políticas e sociais.
Entretanto, uma mudanpa foi ocorrendo ao longo do tempo no sentido de maior ênfase à transformação individual, em detrimento, de certa forma, da ação social. Isto talvez se explique porque os herdeiros imediatos de Kardec, formados naquela atmosfera de positivismo e encantamento com o porvir do homem e da humanidade, foram envelhcendo e sendo substituídos por novos ativistas, formados já na atmosfera de desencantamento e ruína de deuses e valores humanistas, característica daquela passagem de século. A hecatombe da grande guerra (1914/18), corroendo o verniz de civilização com que os homens se haviam adornado e mostrando a verdadeira face bárbara da espécie, foi, talvez, o golpe de misericórdia nas esperanças de todas as mentes progressistas e, particularmente dos espíritas, levando líderes como Léon Denis, Jean Meyer e Conan Doyle a se refugiarem na intimidade do contato com os espiritos e numa consequente ação mais voltada para a reforma íntima e a caridade. Esses acontecimentos reforçaram a tendência religiosa do movimento, e, isto influenciou o movimento no Brasil muito mais do que a cultura deste país.
O fato é que o movimento espírita, antes pujante e influente, praticamente desapareceu na Europa, dando lugar a novos titãs -- comunismo, fascismo, capitalismo -- a se digladiarem no palco da história. O Espiritismo, então, hibernou no Brasil, reciclou-se, e retorna à Europa na esteira do fracasso dessas ideologias, tanto as vencidas como a vencedora.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O MITO DAS TRADUÇÕES DO HERCULANO

Lá pelos anos 70, quando se desenrolava aquele entrevero entre o Herculano Pires e a FEESP - Federação Espírita do Estado de São Paulo (mais o Paulo Alves Godoy,) por conta da esdrúxula tradução do O Evangelho Segundo o Espiritismo, um amigo meu, por sinal sujeito humilde e trabalhador acostumado a concretizar em ações o tão decantado amor ao próximo, disse-me que o Herculano plagiava as traduções do Guillon Ribeiro, alterando algumas palavrinhas aqui e ali para disfarçar. Fiquei escandalizado e atribui o dito ao seu exagerado e ingênuo federativismo. Afinal, como todos os espíritas progressistas, eu admirava e admiro o Herculano como o nosso filósofo maior. Essa admiração, todos nós projetamos em suas traduções: são as melhores, as mais fiéis, as únicas confiáveis... Isto tudo, somando-se à rejeição intelectual à FEB e suas traduções, ultimamente acusadas de tudo o que consideram ruim no movimento espirita: religiosismo, pieguismo, roustainguismo, etc., criam uma certa auréola mitológica em torno das traduções do Herculano.
Mas, é impossível plagiar uma tradução sem deixar pistas.
Dias atrás, um jovem navegador do orkut, querendo talvez exercitar sua auto-imputada ortodoxia, questionou a utilização do termo oxalá na "codificação". Tratava-se de uma intervenção do espírito São Luis, na comunicação da rainha de Oude, no Capítulo VII, Segunda Parte, do livro O Céu e O Inferno, assim traduzida pelo Guillon:

S. Luís. — Deixai-a, a pobre perturbada. Tende compaixão
da sua cegueira e oxalá vos sirva de exemplo. Não
sabeis quanto padece o seu orgulho.

(site da FEB)

Fui conferir no original francês:

Saint Louis. Laissez-la, la pauvre égarée ; ayez pitié de son
aveuglement ; qu'elle vous serve d'exemple, vous ne savez pas combien
souffre son orgueil."


Uái, cadê o oxalá?

Vamos ver como o Herculano, o mais fiel, traduziu.
No site
http://www.freewebtown.com/novomilenium/PDF005/OCeueoInfJHP.pdf, encontrei uma reprodução de sua tradução:

S.Luís — Deixai-a, a pobre perturbada. Tende compaixão da sua cegueira e oxalá vos sirva ela de exemplo. Não sabeis quanto padece o seu orgulho.

Viram? A opção literária que Guillon fez, acrescentando oxalá (poderia ser tomara), coincidentemente também ocorreu ao Herculano.
E mais. A palavra egarée poderia ser traduzida por extraviada, perdida, doida, alucinada, enlouquecida. No entanto, a opção de Guillon por perturbada ocorreu a ambos, de novo numa tremenda coincidência.
Coincidência que também ocorreu na escolha de padecer por souffre; assim como, na transformação do que era uma frase só ("que ela vos sirva de exemplo, não sabeis quanto sofre seu orgulho"), em dois periodos.

Continuo admirando a acuidade intelectual e o tino filosófico do Herculano. Mas, quanto às traduções, sem aderir àquela aceitação quase unânime que se observa.

Para quem se interessar, eis a ficha do facsímile original francês que encontrei:

Título : Le ciel et l'enfer ou La justice divine selon le spiritisme : contenant l'examen comparé des doctrines sur le passage de la vie corporelle et la vie spirituelle, les peines et les récompenses futures / Allan Kardec
Autor : Allan Kardec (1804-1869)
Editor : P. Leymarie (Paris)
Data de publicação : 1913
Língua : Françês
Formato : application/pdf
Direitos : domaine public
Senha : http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k55184b
Fonte : Bibliothèque nationale de France, département Philosophie, histoire, sciences de l'homme, 8-R-29855
Relação : http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb31711365k/description
Procedência : bnf.fr

domingo, 14 de junho de 2009

OS CONGRESSOS ESPÍRITAS

Afinal, Kardec venceu. Sua proposta de congressos periódicos que manteriam o espiritismo atualizado, aconteceu. Desde seu desencarne prematuro naquele indesejado aneurisma de 31 de março de 1869, os congressos se realizaram. Inicialmente, foram regionais, francofônicos, porém com participação de pessoas de vários idiomas. Em 1888, em Barcelona, a série assumidamente internacional se inicia, e sucede-se até o último da fase européia, realizado também em Barcelona em 1934.
Daí, uma sombra tenebrosa escurece os corações humanos: o avanço do fascismo. E a mobilização das forças progressistas contra esse fantasma, enseja uma luta que ceifa milhões de vidas, e suspende temporariamente atividades esportivas, científicas e culturais de cunho internacional. O movimento espírita não seria poupado: encerra-se a fase de liderança européia.
Os congressos de alcance extra-nacionais vão se reiniciar em 1947, em Buenos Aires, caracterizando uma fase latino-americana na liderança do movimento espírita. Sucedem-se a partir daí os Congressos Espíritas Panamericanos, que geram a Confederação Espirita Panamericana - CEPA, que hoje promove também congressos de âmbito internacional.
Mas o início da nova fase de congressos realmente mundiais acontece no final do século, por um trabalho da FEB, cuja crescente influência ideológica e editorial gerou o Conselho Espírita Internacional, que também promove congressos mundiais, sendo o próximo marcado para Valença, Espanha, em 2010.

Como não poderia deixar de ser, os congressos refletem as tendências gestadas dentro do movimento espírita. Hoje em dia as duas principais tendências manifestam-se separadamente, de maneira aparentemente irredutível, nos congressos da CEPA e do CEI: na primeira, o laicismo e a insistência na afirmação científica do espiritismo; no segundo, uma afirmação religiosa e cristã.
Nos congressos da primeira fase (1888/1934) as tendências se encontravam no mesmo evento e tendiam a reduzir-se numa ação comum. Nesses congressos, os discursos, refletindo as tendências, podem ser divididos assim:
- exaltação do espiritismo, suas maravilhas e as benesses que a humanidade recebe dele;
- confirmação dos fatos espíritas, recorrendo sempre à relação de sábios que pesquisavam e comprovavam tais fatos:
- convocação para um trabalho de intervenção social e política por parte dos espíritas;
- preocupação com sua identidade: científica e/ou religiosa.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

DESPERTAR DE INTERESSE

Pode-se observar um crescente número de trabalhos acadêmicos franceses sobre o espiritismo nas áreas de história, sociologia e antropologia; enfim, nas áreas que estudam os movimentos sociais e humanos. Todos eles fazem um retrospecto histórico do espiritismo e reconhecem que hoje em dia não há, nem de longe, o interesse que havia no final do século XIX e começo do século XX. De fato, não há cientista, escritor ou político daquela época que não tenha citado, rechaçado, ridicularizado ou aderido ao espiritismo. Nenhum lhe ficava indiferente. Os estudiosos de hoje, em tais trabalhos acadêmicos, tentam relacionar as causas da decadência do movimento espírita, ou do adormecimento do interesse no assunto. Dentre as várias causas levantadas, há quase unanimidade em duas: a condenação da Igreja e o progresso da psicologia e psiquiatria, trazendo explicações mais sedutoras com os estudos do inconsciente. É preciso levar-se em conta, também, a dificuldade dos intelectuais assimilarem uma ciência parecida com religião, ou uma religião que queria ser ciência.
Mas, por que tanto interesse ressurgindo por algo que decaiu? Por que tanta atenção dedicada a algo que deixou de despertar o interesse dos sábios lá pelos anos 30? A resposta é: porque o espiritismo voltou à ordem do dia. Desde algumas décadas, o Divaldo, talvez o espírita mais conhecido e viajado que existiu, vem disseminando esse conhecimento e esse movimento, muitas vezes à sombra de ditaduras que até há bem pouco assombravam terras européias. Além disso, a inversão do fluxo migratório da humanidade -- que antes parecia vir toda ao Brasil e, de duas décadas prá cá parece derramar-se deste país continente para o mundo. O espiritismo é bastante difundido no segmento social que mais fornece jovens para a emigração. Acrescente-se a isto uma certa importância econômica que o Brasil vem adquirindo no mundo (não sei exatamente se como parceiro, como esperto ou como otário). O fato é que tudo isso somado levou a um crescimento de agrupamentos espíritas em várias partes do mundo, principalmente na Europa. Daí, os franceses começam a se interessar por um movimento de idéias aparentemente exótico mas iniciado por um conterrâneo deles. Afinal, devem pensar, que jabuticaba francesa é essa que desconhecemos? E, ao pesquisar, conhecem que já foi algo bastante presente na mídia e na sociedade em geral num tempo passado antes de tudo, ou seja, antes que a hecatombe de uma guerra mundial que foi mais intensa no quintal de casa, e o esforço amargo da reconstrução eclipsassem uma série de idéias e movimentos que agora ressurgem.

domingo, 7 de junho de 2009

ESPIRITISMO E POLÍTICA

Preciso atualizar esse blog, não é mesmo? Mas, vou fazê-lo em breve.
Estou lendo um texto muito interessante: Spiritisme et politique; de Nicole Edelman, apresentada como Maitre de Conferences à l'Université Paris 10; elaborado em 2004. Pretendo comentá-lo nas próximas postagens, juntamente com o artigo que Giovanni Hoffman, da Academia Internacional de Estudos Espíritas e de Magnetismo de Roma, apresentou no Congresso de 1888, com o título: Da necessidade de uma Federação Espírita Universal e de seu objetivo moral, social e político.

Mas, o que eu achei muito interessante e me apresso em contar, é que a Nicole diz, no artigo, que o Pierre-Gaetan Leymarie, discípulo de primeira hora e continuador de Kardec, exilou-se no Brasil(!) em 1851, quando o Luís Napoleão Bonaparte deu o golpe de estado e tornou-se o Imperador Napoleão III. Não vi esta informação em nenhum outro lugar, e ela não cita a fonte. Logo depois houve a anistia, ele retornou a Paris, e tornou-se colaborador de Kardec.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

VERDADES INCONCUSSAS?! OU VÉRITÉS ACQUISES?

"Uma assembléia para a qual se convocassem todos os que se dizem espíritas apresentaria um amálgama de opiniões divergentes, que não poderiam assimilar-se reciprocamente..." escreveu Kardec, prevenindo, com seu conhecido bom senso, uma situação semelhante à qual vivemos hoje em dia. Daí, bateu na mesa (intelectualmente, claro!) e afirmou arbitrário: "Criamos a palavra Espiritismo, para atender às necessidades da causa; temos, pois, o direito de lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita!" Assim escreveu em 1866; morreu em 1869 e, portanto, em 1929 perdeu definitivamente tal direito para o domínio público.
Mas, ele tentou. Delineou as balizas de uma constituição do espiritismo, onde imaginou uma comissão central para o dia-a-dia e, congressos periódicos para definir as possíveis ou necessárias atualizações. Chegou a imaginar um formulário de adesão onde, prá ser considerado espírita, o adepto faria sua profissão de fé; o que, segundo ele mesmo, criaria a categoria dos espíritas professos (sic). Terminou por escrever: "Pela sua essência mesma, o Espiritismo toca em todos os ramos dos conhecimentos físicos, metafisicos e morais; as questões que ele envolve são inumeráveis; todavia, elas podem se resumir nos pontos seguintes que, sendo consideradas verdades adquiridas, constituem o programa das crenças espíritas". E... caput! Morreu sem enumerar os "pontos seguintes". (E eu fico me perguntando onde o Guillon Ribeiro foi buscar a expressão: verdades inconcussas!)
Alguns congressos foram convocados, após Kardec; principalmente em Bruxelas. Apesar de convidarem pessoas de vários países, não lhe davam um escopo mundial ou universal.
O primeiro ao qual ousaram dar esse status foi o Congrès International Spirite de Barcelone de 1888. Ali, os princípios fundamentais são expostos, tanto no discurso inicial feito pelo presidente da comissão, quanto nas conclusões do congresso.

No discurso de Torres Solanot:
- existência de Deus;
- imortalidade do espírito;
- pluralidade dos mundos habitados;
- pluralidade das existências da alma;
- progresso indefinido;
- afirmação de que a filosofia do Espiritismo deverá sempre se apoiar sobre a ciência e a razão.


Nas conclusões do congresso, indicando talvez a diversidade das tendências, consta como fundamentos do Espiritismo:

Existência de Deus - Imortalidade da alma - Preexistência: Reencarnação - Pluralidade dos mundos habitáveis e habitados - Progresso indefinido - Prática do bem, e o trabalho como meio de o realizar.
Recompensas e expiações futuras, em razão dos atos voluntários - Reabilitação e felicidade para todos - Comunhão universal dos seres - Comunicação com o mundo dos espíritos - Em direção a Deus, pelo amor e pela ciência - Fé racional - Esperança e resignação - Caridade para todos.


Solanot deu a entender que os principios fundamentais seriam definidos no próximo congresso, a se reunir em Paris, em 1889, que acabou tomando o nome de Congrès Spirite et Spiritualiste International, e contou com a presença até do Eliphas Levi. Não consegui encontrar nenhum oferecimento de download gratuito dos relatos desse congresso. Encontrei, sim, uma ótima oferta de ocasião de um exemplar original do livro num sebo de Paris, segundo eles em bom estado, ao preço de 145 euros, o que, acrescido do frete deverá ficar em torno de 500 reais! Muito para o meu bolso no momento. Quem quiser adquiri-lo, o endereço é este:

http://www.chapitre.com/CHAPITRE/fr/BOOK/collectif/compte-rendu-du-congres-spirite-et-spiritualiste-international-de-1889-tenu-a-pa,8953023.aspx

No livro Obras Póstumas, Leymarie cita que o congresso espírita e espiritualista de 1890 (como se vê, faziam congresso todo ano) criou uma comissão de propaganda com a incumbência de gerar um livro atualizando os princípios fundamentais do espiritismo, que seria revisado no próximo congresso.
Deste congresso de 1890, não econtrei ainda nenhuma referência virtual.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

MITO E TABU

De início eu não notava que era um tabu. Afinal, desde que aportei a uma mocidade espírita, no final dos anos 60, fui treinado direitinho para responder sobranceiro a qualquer neófito: "kardecismo não existe!" O jovem é apaixonado; e todo apaixonado é radical; e todo radical é intolerante. Porém, a idade, se a alguns dá tolerância, a outros toma o pouco que têm; com ou sem justiça, me orgulho de tê-la aumentado. Apenas sinto ao ver ainda hoje quarentões, cinquentões e até sessentões arrepiarem e tremerem suas veneráveis cãs ao ouvirem o termo kardecismo, interrompendo, de imediato, ou prejudicando qualquer diálogo esclarecedor com quem sob tal palavra os procura. Não deveria estranhar: todas as religiões criam seus tabus em torno de certas palavras (mesmo aquelas que juram por tudo que lhes é mais sagrado que não são religiões!). Nas comunidades orkutianas, quando vejo a agressiva ojeriza ao termo em questão, não posso deixar de lembrar do filme "A Vida de Bryan", o episódio em que o judeu vai ser apedrejado porque disse a palavra proibida "Jeová": quando viu que ia morrer mesmo, desandou a gritar: "Jeová"... "Jeová"...
Mas, onde entra o mito? O mito é que, mais uma vez, atribuem ao movimento espírita brasileiro o que consideram um erro, no caso, a criação do termo kardecismo!
"Ensinam", a maioria dos internautas, que os brasileiros cunharam o termo na esteira de seu preconceito contra as religiões afro-brasileiras. Seja porque Bezerra, em sua magnanimidade, albergou tais religiões quando fundou a Federação, seja porque todos transitam na mesma fenomenologia, o povo consagrou o uso da palavra espiritismo para um amplo leque de crenças e práticas; assim, alguns teriam se levado pelo orgulho e cometido o erro de criar o termo kardecismo para sua autodefinição. O que se torna um sacrilégio, uma vez que Kardec insistiu em seus escritos que a doutrina não é dele, e, sim, dos espíritos; e, se Kardec falou, tá falado: cumpra-se! Afinal, somos uma religião? ou não?
O bom em tudo isto é que, mais uma vez, graças à virtualidade, podemos desmitificar uma lenda recorrente no meio espírita.
Pois, em 1918, o primeiro biógrafo de Allan Kardec, Henri Sausse, funda, em Lyon, Le Spiritisme Kardeciste. Chegaria a ser megalomania achar que o incipiente espiritismo brasileiro tenha influenciado no nome do jornal em data tão remota.
Mas não é só. Havia, ainda no século XIX, uma União Kardecista Italiana(!), que foi representada por Gabriel Delanne no congresso internacional de Londres, em 1898.
E muitos de nós conhecemos l'Union Spirite Kardeciste Belge, que por várias décadas suportou solitária as edições das obras de Kardec em francês.
Concordo em que se prefira o termo espiritismo a kardecismo. Mas, daí a dizer-se que se trata de um produto tão brasileiro quanto a jabuticaba, vai uma distância muito grande.

terça-feira, 2 de junho de 2009

REALMENTE, A VIRTUALIDADE É UMA MARAVILHA

Consegue-se mais coisas navegando-se virtualmente do que arrastando o potencial cadáver por ares e mares cada vez mais ameaçados pelas mudanças climáticas. Eu e a Renate já estivemos em Paris; nos idos do evanescente século XX, numa Europa pré-euro, pré-internet, pré-quase-tudo. Chegamos até a biblioteca nacional e à biblioteca da Sorbonne; mas, as comemorações da semana do armistício, potencializadas pelo frenesi do fim do milênio, congestionavam ou bloqueavam grande parte dos redutos culturais; restando-nos enfatizar os museus e pontos turísticos tradicionais e, claro, as sempre inadiáveis compras.
No entanto, hoje, apenas uma década depois, refazemos com vantagens a estonteante visita ao Museu D'Orsay, e, na sequencia, sem sair da cadeira, devassamos como ratos indiscretos o acervo digitalizado da BnF, a biblioteca nacional da França, violando com nossos olhos caipiras as raríssimas edições dos séculos anteriores.
Daí, minha insaciável curiosidade pode embriagar-se de dados sobre a história do espiritismo pós-Kardec e pré-Chico, e desfazer na minha mente certos mitos iconoclastas da crítica ao movimento espírita brasileiro.
Um deles, é que o prestígio e a penetração das idéias do Roustaing é algo tipicamente tupiniquim, devido à tradição católica do nosso povo, não encontrando contra-partida no ambiente espírita francês contemporâneo de Kardec ou no período próximo subsequente.
Ora, lendo o resumo do Congresso Internacional Espírita de Barcelona, de 1888, cuja fonte está descrita no primeiro texto deste blog, vemos, em vários discursos, incluindo o do M. Leymarie, sucessor de Kardec na Revista, na Sociedade e nas edições de seus livros, alusões tranquilas e diretas a Roustaing, colocando-o ao lado do mestre na formação doutrinária. Portanto, Roustaing não foi "contrabandeado" pelo Bezerra ou Olímpio, quando do início da implantação do espiritismo nessas paragens tropicais. Ele veio legalmente, com visto de residência e no mesmo camarote que o caro lionês. Se há equívocos -- e acredito que haja, pois não comungo com certas idéias estranhas de quedas de anjos e corpos fluídicos --, vieram no mesmo pacote que a "codificação".
Principalmente se cotejarmos esse fato com a permissividade do próprio Kardec que o colocou como sugestão de leitura e aquisição no Catalogue raisonné pouvant servir à fonder une bibliotèque spirite, outro texto disponibilizado graças à tecnologia moderna.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

PRIMEIRA TENTATIVA DE ENSINO OFICIAL DO ESPIRITISMO

Melhor dizer "talvez a primeira"; pois, sempre se encontra uma anterior.
Uma proposição foi apresentada durante a primeira legislatura das câmaras constituintes da república espanhola (I República), pelos espíritas que se elegeram deputado: José Navarette, Anastasio Gracia Lopez, Luis F. Benitez de Lugo, Manuel Corchado e Mamés Redondo Franco, defendida com eloquencia pelo primeiro. Tratava-se de declarar que o estudo do espiritismo passaria a fazer parte do ensino secundário universitário. A dissolução das Câmaras abortou esse importante movimento. Vale lembrar que a I República Espanhola durou do início de 1873 até o final de 1874, quando foi extinta por um pronunciamiento do General Martinez Campos, que restaurou os Bourbons. A II República, proclamada já na década de 30 do século XX, durou um pouco mais, tendo também sido extinta por um pronunciamiento, dessa vez do General Franco, que, após aquela sangrenta guerra civil, novamente restaurou os Bourbons.

Eis o programa defendido pelo deputado Navarette:

PROGRAMA DE UM CURSO ELEMENTAR DE ESPIRITISMO

Prolegômenos - Noções de cosmologia e antropologia
Tratados sumários:
1o. Pluralidade dos mundos habitáveis e habitados - Cosmografia comparada
2o. Conceito de Espírito - Vida livre - Encarnações
3o. Teoria do progresso - Progresso universal indefinido
4o. Fundamentos da Filosofia, da Moral e da Religiao - Sintese Espírita
5o. Ideal social humano
6o. Espiritismo experimental - Magnetismo, sonambulismo lúcido, fenômenos espontâneos e sistemas de comunicação com o mundo invisível.


Fonte: CONGRÈS INTERNATIONAL SPIRITE DE BARCELONE, 1888
Résumé publié sous la direction du Presidente de la Comission Permanente,
M. Torres Solanot;
Librairie des Sciences Psychologiques; Paris; 1889
http://gallica.bnf.fr/