Ousamos dizer
que o presente livro, lançado em sua primeira versão no dia 18 de abril de 1857, representa uma dessas
revoluções silenciosas: a Revolução do Espírito. Pois os fatos, também demonstrados pela História,
estão a nos dizer que durante muitos séculos, milênios mesmo, a ênfase dos interesses humanos foi, ao
menos pretensamente, direcionada a Deus. Era um paradigma teocrático, que gerava um Estado
teocrático, sustentado por uma poderosa instituição sacerdotal, com sua hierarquia sólida, seus ritos
mágicos e sua capacidade de sugestão controlando as massas. O comportamento era subordinado à
suposta vontade divina e, a adoração, aos seus desejos. E, muito sangue foi derramado pelas religiões
em nome da Divindade.
Depois, com a evolução humana, chegamos ao mundo moderno, no qual a
filosofia universalizou-se e foi construída uma ciência baseada na dúvida, na observação, na pesquisa e
experimentação, mas, principalmente, na ausência do medo de pensar. Construiu-se, assim, o
paradigma humanista, onde a ênfase é retirada da Divindade e passa a ser dada ao Homem, suas
necessidades, seus direitos, suas aspirações e suas destinações. E, novamente, muito sangue foi
derramado pelas revoluções em nome da Humanidade.
Com este livro, e a consequente elaboração de
uma nova mundividência, podemos enxergar no horizonte a emersão de um novo paradigma, onde a
ênfase que já foi exclusiva da Divindade e, depois do Homem, transcende o imediato e passa a ser dada
ao Espírito, ou seja, à nossa individualidade que sobrevive à extinção do corpo físico. Esperamos, pelas
próprias características desta revolução e, com um pedido de desculpas pela irreverência da
comparação, que nenhum sangue venha a ser derramado em prol da Espiritualidade ou de suas
possíveis interpretações.
Neste novo paradigma, a própria Teologia deixa de ser dependente da crença, tornando-se um
conhecimento conseguido pela razão, onde se retira de Deus suas conformações antropomórficas para
redesenhá-lo em nossas mentes e em nossos corações através dos atributos que consigamos lhe
conferir. A Cosmologia não é mais ditada pela mitologia, mas construída a partir do método
experimental das Ciências, tão falível quanto perfectível. A Psicologia passa a contemplar um ser interexistente, que existia antes do próprio nascimento, existe durante a vida e, continua a existir após a
morte, retornando à História quantas vezes necessárias para o seu pleno desenvolvimento e progresso;
além de manter constante comunicação entre as diferentes etapas da existência permanente. A
Sociedade deixa de ser concebida como resultado da simples soma dos esforços das várias gerações, e
passa a ser entendida como o resultado da sinergia entre essas diversas gerações, pois que, elas não
mais apenas se sucedem, como também convivem, ainda que em situações existenciais diferentes. E as angústias
do homem quanto ao seu futuro, quanto às penas e gozos que eventualmente o esperem após a
passagem solitária pela morte, são-lhe delineadas pelo testemunho mesmo dos que se foram, através
do mecanismo da mediunidade, experimentado e testado sob os rigores da observação científica. Este
é o novo paradigma que o presente livro e as obras subsequentes que o completam está construindo.
O Paradigma do Espírito, da imortalidade, da responsabilidade individual pelos próprios atos e, da
multiplicação ao infinito das oportunidades de correção e progresso.
Com este caráter e destinação, "O Livro dos Espíritos" mereceu várias traduções em diferentes
idiomas, permitindo a extensão de sua influência a diversos povos e países. Aos falantes da língua de
Camões (última flor colhida no canteiro da latinidade, parodiando os poetas), têm sido oferecidas, até
então, traduções feitas por brasileiros. Traduções bem esmeradas; elegantes umas, simples e práticas
outras. Porém, agora, somos brindados com uma tradução feita diretamente para o português europeu,
enriquecendo a bibliografia espírita com uma versão na expressão genuína de um idioma que, por
estender-se em vasto território, de quatro continentes, não poderia deixar de gerar suas diferenças
regionais.
Mas, não é somente neste ineditismo que se assentam as qualidades da presente tradução.
Existem outras; e, para falarmos delas, é mister que teçamos algumas considerações sobre os rumos
tomados pelo Espiritismo em sua história.
Apesar de ser um movimento de ideias que apela constantemente à razão, ao bom senso, à
pesquisa e à experimentação, o Espiritismo não logrou livrar-se das imperfeições daqueles que tomaram
para si a tarefa de levá-lo ao conhecimento de todos os agrupamentos humanos. Allan Kardec deixou
um roteiro seguro para que os novos conhecimentos científicos ou as novas informações porventura
transmitidas pelos Espíritos passassem a compor com segurança o rol dos fundamentos doutrinários.
Foi o método que ele próprio usou e que detalhou na Introdução de uma de suas Obras, "O Evangelho
Segundo o Espiritismo", chamando-o de "Controle Universal do Ensino dos Espíritos". Entretanto, seus
continuadores negligenciaram o método, e o Espiritismo começou a sofrer desde os primórdios, logo
após o desencarne do Mestre, de enxertias místicas tributárias de velhos atavismos religiosos. E tal
misticismo, ressurgido das profundezas do inconsciente coletivo das massas, agregou-se de tal modo às
práticas espíritas que até hoje influencia as opiniões de seus adeptos, ainda que de forma subjacente e
de difícil conscientização, gerando toda uma literatura e um conjunto de crenças, quase sempre
incompatíveis com a simplicidade e pureza dos princípios originais identificados pelo fundador do
movimento.
É precisamente neste ponto que ressaltam as qualidades da presente tradução. Por um lado, há
a preocupação com a linguagem. A língua é uma substância viva, em evolução permanente, gerando
novos falares, alterando significados, sempre ao sabor dos acontecimentos fortuitos vividos pela
coletividade dos falantes dos diferentes idiomas. Os tradutores investiram seu "engenho e arte" na
apreensão dos significados contextualizados no momento do surgimento da obra, traduzindo-os, o mais
fielmente possível, não somente para outro idioma, mas, também, para outra época. Além disso,
enriqueceram a edição com preciosas Notas, nas quais são trazidas, para ampliar a compreensão da
obra, tanto informações valiosas sobre novas descobertas ou conceituações científicas, quanto
conjeturas de cunho interpretativo e esclarecedor, seja da própria lavra dos tradutores, seja garimpada
na contribuição de diversos outros pensadores espíritas. Em sua busca pela fidelidade ao pensamento
do autor, pela simplicidade na exposição do conteúdo, e pelas Notas referidas, os tradutores
conseguiram construir um texto que contribui, sem dúvida nenhuma, para o retorno do próprio
pensamento espírita às suas origens racionais e sóbrias, dignas de um movimento científico e filosófico.
Eis a tradução que ora se coloca à disposição não apenas dos portugueses, mas de todos os
habitantes do oceano lusófono. Uma tradução viva, no dizer dos próprios autores. Uma contribuição
valiosa para a compreensão do Espiritismo conforme o pensamento do seu fundador. Oxalá, sirva de
exemplo para outros trabalhadores desta promissora seara.
Texto inserido como "Palavras de Acolhimento" na tradução de "O Livro dos Espíritos", de José da Costa Brites e Maria da Conceição Brites.
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