Apesar de não ter, ou mesmo aparentar, a menor pretensão em tornar-se uma "escola filosófica", o espiritismo é, sem sombra de dúvida, uma filosofia. O filósofo espírita J. Herculano Pires demonstrou isto fartamente em toda sua obra, mas, principalmente, na "Introdução à Filosofia Espírita", em "Ciência Espírita", e, na sua "Introdução ao Livro dos Espíritos". Kardec coloca sobre o título de "O Livro dos Espíritos" a identificação "Filosofia Espiritualista", e inicia "O Evangelho Segundo do Espiritismo" com um resumo da doutrina de Sócrates e Platão, pretendendo, segundo o Herculano, inseri-lo na tradição filosófica do espiritualismo. Mas, eu diria mais: apesar do intenso diálogo travado por Kardec com o positivismo dominante na filosofia francesa de sua época, acredito que sua filiação se dá mais intimamente com o espiritualismo de Victor Cousin, o eclético "ditador filósofo" que dominou as cátedras correspondentes em Paris durante grande parte do século. E, já em sua fase juvenil, o espiritismo, levado por Gustave Geley, retoma uma trajetória em sintonia com o espiritualismo restaurado no século XX pelo filósofo e prêmio Nobel Henry Bergson. Chegando ao final do século como uma filosofia da ética -- cuja praxis é tanto individual como social --, cuja vivencia é buscada expontânea e naturalmente pelos seus adeptos, mas sistematizada pelo próprio Herculano e mais o filósofo argentino Humberto Mariotti. Não é surpresa essa evolução constante no período, com a contribuição de várias mentes, pois Lalande já observava que Kardec não é o único, mas apenas "le plus célèbre".
E as credenciais filosóficas do Herculano para iniciar -- e avançar razoavelmente -- nessa sistematização, caso não fossem confirmadas pelo Professor Jorge Jaime em sua extensa "História da Filosofia no Brasil", o seriam pelo seu enquadramento nas diversas acepções do verbete "philosophe", do "Vocabulaire" do Lalande, principalmente a acepção "E" (Herculano bacharelou-se e licenciou-se em filosofia pela USP), apesar da advertência do dicionarista francês de que "cet usage du mot n'est pas d'une bonne langue, si ce n'est quand il implique une nuance d'ironie" (ou seja, o uso do termo filósofo para profissionais professores e estudantes, comum em nosso país, só se justifica quando implica uma nuance de ironia).
Herculano faz uma afirmação ousada em sua "Ciência Espírita e suas Implicações Terapêuticas", de 1978, que tem recebido crítica de alguns estudantes de filosofia: "A Filosofia Espírita foi reconhecida pelo Instituto de França e figura no 'Dicionário Técnico da Filosofia', de Lalande".
Este dicionário é o "Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie", que André Lalande elaborou e publicou em fascículos durante as duas primeiras décadas do século XX. Não elaborou só. Travou profícua correspondência com vários filósofos contemporâneos -- Henri Bergson, Émile Meyerson, Édouard Le Roy, Maurice Blondel, Jules Lachelier, Léon Brunschvicg, Henri Delacroix, Frédéric Rauh, Georges Sorel, Pierre Janet, Edmond Goblot, Louis Couturat, Victor Delbos, e outros --, cujas contribuições se transformaram em notas de pé de página na edição definitiva. Herculano, sem dúvida, teve acesso à edição francesa, publicada apartir de 1926, em dois tomos (um terceiro, "Nouveau Supplement", foi acrescentado a partir de 1932), totalizando mais de mil páginas, uma vez que ainda não havia a edição brasileira, utilizada agora pelos seus críticos. No momento, tenho acesso à edição francesa de 1928, e à edição argentina de 1953, contendo, ambas, toda a discussão com os filósofos.
O verbete "spiritisme" já seria suficiente para permitir ao Herculano sua afirmação de que "figura no dicionário". Mas, é no verbete "spiritualisme" e, principalmente, na discussão entre os filósofos, ao pé da página, que a doutrina espírita ganha status de assunto filosófico.
Na acepção "D", Lalande repete a distinção feita por kardec entre "espiritismo" e "espiritualismo". Nas discussões, Brunschvicg, depois de observar que a conexão entre espiritualismo e sociologismo lhe parece derivar do "novo espiritualismo, que ocupa cada vez mais lugar no pensamento de Comte", escreve: "Não vejo, de forma alguma, que haja a menor razão para eliminar o espiritismo como uma das significações próprias do espiritualismo. Desconhece você assim a influência profunda e persistentes das crenças e das práticas espiritistas nas crenças e práticas religiosas, desde as mais antigas e rudimentares até as mais recentes". Mas, na sequência, Maurice Blondel acusa "alguns dos que comerciam com os espíritos" de confiscarem a acepção eclética do termo "porque não se contentam em ser espiritistas, ou porque o título de espiritualista é melhor aceito".
E Andre Lalande finaliza dizendo que ultimamente a palavra voltou a ter prestígio, mas "unicamente o uso que dela se tem feito anteriormente e os interesses filosóficos que ela representa em nossos dias podem determinar sua significação".
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